Vegetariano sofre
Há poucos dias participei, com muito gosto, num jantar solidário e vegetariano promovido Núcleo de São Miguel da Associação Animais de Rua, organização que trabalha em prol da esterilização de animais abandonados e na procura de adotantes para todos os animais dóceis.
A esmagadora maioria dos participantes com quem falei, independentemente das suas opções em termos alimentares, acharam que o evento foi muito bem organizado e que os pratos apresentados estavam muito bem confecionados e apetitosos.
Mas, como não há bela sem senão, um ou dois dos participantes, que também corroboraram com os outros no que diz respeito à organização e à ementa oferecida, passaram a noite a afirmar que não eram fundamentalistas e que também comiam carne ou, num caso, que os pratos estavam maravilhosos mas para servirem de acompanhamento à carne que estava em falta.
Atendendo a que os mesmos não tinham sido enganados, isto é, sabiam ao que iam, não se compreende a insistência na abordagem dos regimes alimentares e a intolerância face a quem optou ou opta por não usar a carne na sua alimentação.
Escrevi intolerância já que fundamentalistas são sempre os outros, nomeadamente aqueles que por razões de saúde, por imperativos da sua consciência, relacionados com os animais e/ou a proteção do ambiente, ou por quaisquer outras razões, decidiram divergir, em termos alimentares, da ditadura da maioria ou das imposições da indústria alimentar.
Sobre este assunto várias personalidades têm-se pronunciado a favor de um ou outro regime alimentar, por vezes em termos violentos e intolerantes, o que em nada contribui para a promoção dos seus ideais. Por outro lado, há outras que têm posições mais sensatas e respeitadoras do outro, como é o caso do filósofo Agostinho da Silva que afirmou: “deve escolher-se a fonte de proteína que seja ao mesmo tempo a mais barata e a mais adequada a cada Povo, insistindo-se, porém, sempre, no consumo da proteína vegetal equiparável: animal está no mundo para ser nosso companheiro, não nosso escravo e vítima”.
Hoje, nos Açores, ser vegetariano não deve ser tarefa fácil tanto são os preconceitos existentes e é raro que quem o é não seja motivo de chacota por parte da maioria que se julga sábia, de que são exemplo, as “bocas” como, “só come alfaces” ou “basta o acompanhamento”, etc.
A prova de que apesar de a Terra já ter dado cerca de noventa voltas ao Sol, ainda hoje se pensa como se pensava em 1928, quando Ponta Delgada recebeu Mascarenhas Araújo que percorreu o país “em propaganda vegetariana e antialcoólica”. Assim, no mesmo número do Correio dos Açores em que aquele foi entrevistado e talvez para contrabalançar ou ridicularizar as suas opiniões, o jornal apresentou uma nota de humor do seu habitual “colaborador” Jack.
Com o título “A apoteose da hortaliça”, o “humorista” Jack, depois de caraterizar Mascarenhas Araújo como “figura apostólica de doutrinador descarapuçado e de sandálias”, termina o seu texto nos seguintes termos:
“Simplesmente, o que posso afirmar é que, seduzidos com a promessa de rara longevidade, há já aí muito patrício nosso que vai cultivando a hortaliça em regímen de abstinência de viandas.
E ainda ontem o meu vizinho X despediu furibundo o homem do talho.
- Não quero mais esse veneno, clamou. Isso que você vende está cheio de toxinas, dizia X, ante o espanto do carniceiro obnóxio.
E como o homem resmungasse qualquer coisa, X rematou eloquente e convicto:
- Pois fique sabendo que ainda o que pode salvar a raça:- sabe o que é?
É o repolho, sim, meu amigo, o repolho!...”
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 30595, 1 de abril de 2015, p. 14)
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