domingo, 6 de outubro de 2024

Antigamente, no tempo de Salazar, é que era bom?

 

Imagem: Tarrafal

Antigamente, no tempo de Salazar, é que era bom?

 

Este texto foi elaborado a partir de apontamentos que recolhemos para dinamizar uma conversa sobre o salazarismo, promovida pela livraria Letras Lavadas, de Ponta Delgada, no dia 24 de abril de 2024.

 

Depois de uma curta nota biográfica de António de Oliveira Salazar, abordamos as condições impostas para quem queria ser funcionário público e em particular as imposições impostas aos professores, em particular às professoras, a purga dos professores universitários, a discriminação das mulheres, os escândalos, a guerra colonial, a repressão e as prisões, o favorecimento a determinadas empresas e a corrupção.

 

Apesar de alguns dos acontecimentos referidos terem ocorrido após a morte de Salazar, durante o governo de Marcelo Caetano, decidimos manter o título, pois foi aquele político quem governou mais tempo durante os 48 anos de ditadura.

 

António de Oliveira Salazar (1889-1970) foi professor catedrático de Economia Política, Ciência das Finanças e Economia Social da Universidade de Coimbra. Entre outros cargos, foi Ministro das Finanças entre 27 de abril de 1928 e 28 de agosto de 1940, Ministro da Defesa Nacional entre 13 de abril de 1961 e 4 de fevereiro de 1962 e Presidente do Conselho de Ministros de 5 de julho de 1932 a 27 de setembro de 1968.

 

O regime político por ele criado, o Estado Novo (1933–1974) foi autoritário, conservador, nacionalista, corporativista de inspiração fascista, antiliberal, antiparlamentarista, anticomunista e colonialista.

 

Ausência de liberdade política/ Obrigatoriedade de adesão à ditadura

 

Durante a Ditadura Militar e o Estado Novo estavam proibidos os partidos políticos e a liberdade de associação estava bastante restringida. Apenas podiam existir as organizações criadas pelo próprio regime, como sindicatos, ou associações que não tinham qualquer intervenção política, como por exemplo, a Liga para a Proteção da Natureza, em Lisboa, ou Os Montanheiros, na ilha Terceira.

 

Não era possível manifestar ideias contrárias ao do regime. Assim, pelo Decreto nº 20 314, de 16 de setembro de 1931, “podem ser temporariamente afastados do serviço, reformados, aposentados ou demitidos os funcionários de todos os serviços do Estado que, por manifestações a que se tenham entregado, no exercício das suas funções, ou fora dele, demonstrem espírito de oposição à política nacional, ordeira e reformadora, do Governo da República, não dando suficientes garantias do leal cumprimento dos deveres do seu cargo”.

 

Mais tarde, por imposição do disposto no decreto-lei nº 27 003, de 14 de setembro de 1936, era obrigatório assinar uma declaração a repudiar o comunismo.

 

O caso mais curioso foi o do filósofo Agostino da Silva que se recusou a assinar a declaração ao afirmar que embora não fosse comunista, não sabia se poderia vir a ser no futuro.

 

A purga dos professores universitários

 

De acordo com Rosas e Sizifredo (2013) entre 1927 e 1973, cerca de cinquenta professores universitários foram perseguidos e afastados do ensino, muitos deles não desenvolviam qualquer atividade política ativa de oposição ao regime, apenas por expressarem as suas opiniões ou se solidarizarem com colegas ou alunos.

 

Entre os demitidos figuram Afonso Costa, o primeiro, em 1927, Abel Salazar, Bento de Jesus Caraça, Ruy Luís Gomes, Luís Dias Amado, Vitorino Magalhães Godinho, Francisco Pereira de Moura, último em 1973, e Cesina Bermudes. Da lista, fazem parte dois açorianos, naturais da ilha Terceira: Aurélio Quintanilha (biologia) e Mário de Azevedo Gomes (agronomia).

 

A residência, o comportamento e o casamento do(a)s professore(a)s

 

Os professores primários não podiam residir onde queriam. O Estado Novo manteve a obrigatoriedade de residência no local onde a escola ficava sedeada e mesmo os casados só podiam viver juntos se as suas escolas não se distanciassem mais de 5 km.

 

As professoras não eram livres de casar com quem quisessem. Assim, de acordo com o Decreto-Lei nº 27 279, de 24 de novembro de 1936, a autorização de casamento das professoras era concedida por despacho do Ministro após requerimento acompanhado de atestado de bom comportamento do pretendente e de documento(s)  comprovativo(s) de que o seu vencimento ou rendimento era de harmonia com o vencimento da professora.

 

O comportamento dos professores primários era também escrutinado, havendo legislação ou recomendações para o efeito. Fernandes (1961) refere que de acordo com o Decreto-Lei nº 27 279, de 24 de novembro de 1936, era “exigido um “comportamento moral irrepreensível para o exercício do magistério primário” e seria destituído quem desse escândalo público permanente ou assumisse atitude contrária à ordem social estabelecida pela Constituição de 1933.” O mesmo autor refere a recomendação “às professoras e regentes dos postos escolares toda a compostura nos trajes e proibido o uso de pinturas.

 

Três exemplos de discriminação das mulheres

 

Viagens

De acordo com o Código do Processo Civil de 1939, as mulheres não podiam viajar para fora do país a não ser que tivessem autorização dos maridos. Esta proibição acabaria três décadas mais tarde, já com Marcello Caetano no poder.

 

Exercício de algumas atividades/ profissões

Até 1967, as mulheres também tinham de ter o consentimento dos maridos se quisessem exercer atividades ligadas ao comércio, assinar contratos ou tomar decisões sobre bens (casas ou propriedades) que lhes pertenciam.

 

As Telefonistas da Anglo Portuguese Telephone, as enfermeiras dos Hospitais Civis, as funcionárias do Ministério dos Negócios Estrangeiros e as hospedeiras de ar da TAP não podiam casar. A proibição para as telefonistas acabou em 1939, mas continuou mais umas décadas para as outras profissões.

 

A nacionalidade de quem nascia no estrangeiro

De acordo com o jurista Arnaldo Ourique (Diário dos Açores, 9 de abril de 2024), de segundo a lei 2098, de 29 de julho de 1959, “a nacionalidade de criança nascida no estrangeiro não era reconhecida à mãe, era-o apenas ao pai português.

 

Tal aconteceu a Rime de Jácome Correa El Lozzy nascida na Suíça, em 1952, filha de Margarida Jácome Correia e que, em 1973, ainda possuía o bilhete de Identidade de “cidadã estrangeira, apátrida.”

 

Naquele tempo respeitavam-se determinados valores morais. Não existiam escândalos

 

No ano de 1967, veio a público um escândalo que viria a ser conhecido como “o processo das virgens/Ballet Rose”. Durante vários anos diversos homens dos mais importantes do Estado Novo participavam em orgias com crianças, algumas das quais com idades entre os oito e os doze anos que levaram à morte de pelo menos uma mulher.

 

O que fez o Regime/Salazar?

 

Segundo Moita Flores, “Salazar obriga os visados a pararem os seus comportamentos e manda controlar a investigação. No escândalo estava envolvido o seu homem de confiança que supostamente era o seu sucessor indigitado, o ministro de Estado Correia de Oliveira. […] Havia outros homens que frequentavam este circuito, ligados à União Nacional, gente ligada à administração da Companhia Nacional de Navegação e até o dono do Casino do Estoril. […] Havia tanta gente ligada ao regime que Salazar mandou controlar a investigação à distância pela PIDE e a certa altura o caso começa a parar. A PJ fica sem meios e acaba por só levar a tribunal um caso de atentado ao pudor e pouco mais. Sentam-se no banco dos réus várias mulheres e poucos homens. Acaba com a condenação da maioria das mulheres e com a multa a um dos homens.”

 

A Guerra Colonial

 

Os jovens, sobretudo os mais bem informados, viviam atormentados com a questão da guerra colonial.

 

Alguns percebiam a injustiça que havia, pois quem tinha algum dinheiro safava-se, isto é, pagava para lá não ir. Através das chamadas cunhas ou por meio de trocas, isto é um soldado ia no lugar de outro a troco de uma determinada quantia em dinheiro.

 

A outra questão que os afligia eram as mortes de familiares, amigos ou vizinhos ocorridas nas várias colónias.

 

Sobre o número de mortos, em 2021, o historiador e tenente-coronel do exército português, Pedro de Sousa, no livro “Os números da Guerra em África” afirmou que haviam morrido 10 mil militares portugueses e mais de 45 mil civis e agentes dos movimentos de libertação. Também referiu que terá havido cerca de 9 mil desertores.

 

Em relação aos custos, Ricardo Ferraz, no livro “Grande Guerra e Guerra Colonial-custos para os cofres portugueses”, aponta o valor de 126 milhões de contos (34,8 mil milhões de euros), o que corresponde em média a 22% da despesa do Estado em cada ano.

 

Durante a guerra colonial ocorreram vários massacres de populações indefesas.  Abaixo, fazemos referência a dois deles.

Massacre de Pidjiguiti

 

A 3 de agosto de 1959, os marinheiros e estivadores do Porto de Bissau ao serviço da Casa Gouveia no cais de Pidjiguiti entraram em greve, exigindo melhores salários e melhores condições de vida.

A PIDE, o cabo do mar e outras forças abriram fogo sobre os grevistas. Terão morrido entre quarenta e setenta homens e ficado feridos cerca de cem.

 

O Massacre de Tete

 

Em Tete, Moçambique, em 1972, terão morrido entre 300 e 500 nativos chacinados pelas tropas portuguesas

 

Matava-se para não ter trabalho

 

No livro, de Júlio Oliveira, “O sargento Tavares: as memórias do meu avô” é relatado o assassinato de um nativo em Angola, em 1963, para o soldado não ter o trabalho de o vigiar.

 

A Repressão e as prisões

 

Durante a ditadura militar e Estado Novo passaram pelas prisões portuguesas, por razões políticas, mais de 30 mil pessoas.

 

Pelo Tarrafal ou Campo da Morte Lenta entre 1936 e 1956 passaram 340 presos portugueses, tendo morrido 34 devido a maus-tratos, má alimentação e falta de assistência médica. Depois da sua reabertura em 1961, após o início da guerra colonial para receber militantes das antigas colónias, passaram por lá. 230 anticolonialistas, tendo falecido 2 guineenses e 2 angolanos.

 

Por Angra do Heroísmo (Fortaleza de São João Baptista e Forte de São Sebastião), em 12 anos de funcionamento da colónia penal, passaram 645 presos, sendo cerca de 50 naturais ou residentes nos Açores. Lá, por falta de assistência médica, má alimentação e maus-tratos morreram 8 presos.

 

De entre os antifascistas açorianos que morreram, às mãos dos esbirros do Estado Novo, recordamos António Luís Lourenço da Costa, Carlos Eugénio Ferreira, José Machado e Melo João Guilherme Rego Arruda.

 

António Luís Costa, natural de Angra do Heroísmo, fotógrafo, morreu com 58 anos de idade na prisão daquela cidade.

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Carlos Eugénio Ferreira, estufeiro na Fajã de Baixo, natural de São Roque, vítima de maus-tratos, morreu com 33 anos de idade, na Casa de Saúde de São Rafael, depois de ter passado pelo Depósito de Presos da Fortaleza de São João Batista de Angra do Heroísmo.

 

José Machado e Melo, sapateiro, de Ponta Delgada, morreu aos 45 anos de idade quando se encontrava sob prisão no Hospital Militar de Angra do Heroísmo.

 

João Guilherme Arruda, natural da freguesia de Santo António, morreu com a idade de 20 anos, no dia 25 de abril, baleado na cabeça por uma das balas disparadas pela PIDE.

 

A repressão também se fazia sentir em relação ao associativismo, quer proibindo a existência de associações/cooperativas, como foi o caso da Cooperativa Sextante, quer vetando o nome de pessoas eleitas

 

A escritura de constituição da Sextante, Sociedade Cooperativa de Consumo, de Responsabilidade Limitada, foi feita no cartório notarial da Lagoa, no dia 20 de outubro de 1970.

 

Os sócios fundadores foram: Ernesto Melo Antunes, Manuel Barbosa, Jorge Nascimento Lopes, José Dias de Melo, João Carlos do Couto Macedo, Hélder Martins da Costa, João Gil Tavares da Ponte, Eduardo Pontes, Sebastião de Oliveira Vasconcelos e António Manuel Mendonça da Costa.

 

A cooperativa foi encerrada por despacho do Ministro do Interior, datado de 12 de outubro de 1972.

 

Não existia a liberdade de eleger e de ser eleita. Beatriz do Canto foi impedida, em 1948/49, de exerce o cargo de Presidente da Assistência Maternal e Infantil de Ponta Delgada pelo Governador do Distrito Aniceto dos Santos.

 


O favorecimento a determinadas empresas

 

Na brochura “As cinco desgraças do Arquipélago dos Açores”, publicada em 1961, entre outras situações injustas, Cristiano Frazão Pacheco denuncia o seguinte:

 

- Uma empresa comercial, em regime de monopólio, comprava água ao Município de Ponta Delgada a seis escudos por metro cúbico e vendia a quarenta escudos. Segundo ele era um caso de especulação que era punido pelas leis;

 

- Para beneficiar uma empresa foram proibidos de navegar entre as ilhas dos Açores os pequenos “iates do Pico”;

 

- Para beneficiar uma empresa de São Miguel em regime de monopólio, os açorianos pagavam por cada quilograma de açúcar mais três escudos do que pagariam se o mesmo fosse importado das colónias. O pretexto era o lucro de cinco ou seis mil cultivadores micaelenses, que pelos vistos eram mal pagos.

 

Salazar era corrupto?

 

Na internet li o seguinte: “A corrupção consiste em receber ou oferecer vantagem indevida para ou de outras pessoas.”

 

Há dias assisti a um vídeo, onde alguém perguntou a um  historiador se Salazar era corrupto e a resposta foi negativa. Segundo, ele Salazar viveu humildemente e quando morreu a sua herança, valia, em números atuais, cerca de 50 mil euros.

 

Mas, não será corrupção favorecer uns grupos económicos em relação a outros? Não será corrupção permitir lucros exorbitantes a determinadas empresas ou a criação de monopólios para determinadas atividades? Não será corrupção arranjar casas, empregos, para pessoas amigas ou do seu partido? Não será corrupção intervir junto dos tribunais para salvar amigos ou familiares de amigos?

 

A leitura do livro de Marco Alves, que recomendamos, dá a conhecer como “Salazar, apesar da reputação que construiu de ser ético e rigoroso, não se coibia de usar os privilégios do cargo e a máquina publica para resolver os seus problemas e os de quem o rodeava.”

 

Bibliografia

 

Alves, M.(coord) (1975). O Processo das virgens- Aventuras, venturas e desventuras sexuais em Lisboa, nos últimos anos do fascismo. Lisboa, Fernando Ribeiro de Mello/edições Afrodite.357 pp.

 

Alves, M. (2023). Salazar confidencial. Porto, Ideias de Ler. 371 pp.

 

Braga, T. (2024). Resistência e Liberdade-Dicionário de opositores ao Estado Novo. Ponta Delgada, Letras Lavadas. 89 pp.

 

Carvalho, I. (2020). Memórias da Luta Clandestina. Cabo Verde, Edição da família. 355 pp.

 

Dionísio, J. (2023). Massacres na guerra colonial. Lisboa, Espaço Ulmeiro. 69 pp.

 

Fernandes, A. (1961). Elementos Práticos de Legislação Escolar. Braga, Livraria Cruz.

439 pp.

 

Júnior, C. (1933). Anuário do Professor 1933-ano I. Fail, Correio da Horta. 232 pp.

 

Pacheco, C. (1961). As cinco desgraças do Arquipélago dos Açores. Ponta Delgada, Edição da Família. 87 pp.

 

Rodrigues, M. (1974). Tarrafal aldeia da morte- o diário da B5. Porto, Brasília Editora. 327 pp.

 

Rosas, F., Sizifredo, C. (2013). A perseguição aos professores. Lisboa, Tinta da China. 143 pp.

 

https://quebichotemordeu.com/destaques/as-10-proibicoes-de-salazar/


("Letra a Letra", nº 14, outubro de 1974)

 

 

 

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