A propósito do jornal do Pico da
Pedra
Como se está a
comemorar o surgimento de um jornal no Pico da Pedra há 50 anos, que
originalmente se chamou O Grito do Povo, decidi escrever alguns
apontamentos sobre o período em que, em Portugal, houve maior participação das
pessoas na vida social das suas terras: os anos de 1974 e 1975.
Depois do derrube de
uma feroz e longa ditadura que oprimiu o povo português durante quase meio
século, o golpe militar de 25 de Abril de 1974 foi saudado pela maioria do
povo, que, logo no primeiro dia, não obedeceu ao MFA e veio para as ruas. Nos
dias seguintes, a população decidiu tomar nas suas mãos os seus destinos e
criou comissões de moradores, comissões de trabalhadores, comissões para
resolver problemas com que se defrontavam as suas terras, associações informais
de jovens, sindicatos e desalojou as direções fascistas que os dirigiam, fundou
cooperativas para, em primeiro lugar, combater a carestia de vida, criou
creches, etc.
Se é verdade que
terão existido alguns “excessos” e manipulações partidárias — aos partidos
interessa-lhes, em primeiro lugar, a conquista do poder —, foi no chamado PREC,
o período mais democrático da história portuguesa, segundo a historiadora
Raquel Varela, que alguns, infelizmente poucos, açorianos decidiram agir, sem
intermediários, e contribuir para uma transformação social rumo a uma sociedade
em que a democracia não se limitasse apenas ao voto, mas onde houvesse mais
justiça e equidade social.
A criação de O
Grito do Povo foi uma louvável iniciativa da juventude do Pico da Pedra
que, através dele, entre outros assuntos, denunciou a prepotência de um padre,
o desleixo de uma câmara municipal, a persistente falta de água na freguesia e
deu a conhecer iniciativas dos jovens, entre as quais a do Juventude Futebol
Clube.
Mas talvez a
iniciativa que considero de maior importância — e que ainda hoje continua, em
parte, viva — foi a da criação de um sindicato de trabalhadores rurais, que por
sua vez esteve na fundação de uma cooperativa de consumo.
Numa altura em que o
número dos assalariados correspondia a 65% da população rural do distrito de
Ponta Delgada, e em que recebiam salários de miséria e muitos não tinham
trabalho garantido, as gentes do Pico da Pedra foram pioneiras na defesa
daquela classe profissional. Assim, a título de exemplo, regista-se uma reunião
realizada no Pico da Pedra, a 1 de maio de 1975, com a presença de
trabalhadores rurais de Santa Cruz e do Rosário, do Livramento, das Capelas, de
São Vicente Ferreira e do Pico da Pedra, e outra, a 29 do mesmo mês, na Junta
de Freguesia da Fajã de Baixo, que contou com a presença de “cerca de 50
camponeses representando à volta de 11 freguesias micaelenses”.
É bom recordar, numa
altura em que neofascistas estão a deitar as garras de fora, que, mesmo depois
do derrube da ditadura, os adeptos de Salazar e Caetano não ficaram de braços
cruzados. Assim, alguns dos dirigentes dos sindicatos foram intimidados e alguns
trabalhadores aconselhados a não aderirem aos mesmos por estarem,
pretensamente, ligados ao Partido Comunista. No Pico da Pedra, o presidente do
sindicato foi alvo de uma queixa em tribunal, por parte de duas entidades
patronais, pelo facto de, segundo os queixosos, ser também sócio do Sindicato
dos Estufeiros.
Embora com uma vida
efémera, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Pico da Pedra teve a
iniciativa de criar, já em 1977, a Cooperativa de Consumo do Pico da
Pedra, que foi fundada para garantir o acesso a bens essenciais a
preços justos e que, embora primeiramente destinada aos seus membros, ainda
serve toda a freguesia.
Estamos a viver
tempos difíceis, em que parte da população não está apetrechada com os meios
capazes de distinguir a verdade da mentira; em que alguns políticos ou
aspirantes a tal, para caçar votos, dizem o que mais agrada às pessoas; em que,
com base em dados falsos, se criam artificialmente inimigos, como os imigrantes
ou os mais frágeis socialmente; em que se desvaloriza ou mesmo ignora o
conhecimento científico; e em que se insulta quem tem opiniões diferentes,
mesmo que fundamentadas. Por isso, é importante a existência de um jornal
isento e plural numa freguesia.
A Voz Popular
pode e deve continuar a ser um exemplo inspirador para outras localidades e um
elo entre gerações, ligando os seus habitantes atuais a todos os que foram
obrigados a procurar uma vida melhor noutras paragens.
Pico da
Pedra, 10 de agosto de 2025
Teófilo Braga
(Publicado em “Voz Popular”, 213, agosto de 2023)