segunda-feira, 21 de julho de 2025

Apontamentos sobre Ângelo Jorge

 


Apontamentos sobre Ângelo Jorge

 

Poucos pormenores são conhecidos sobre a biografia do escritor e jornalista Ângelo Jorge.

 

Sabe-se que nasceu na Cidade do Porto, no dia 4 de setembro de 1883, e faleceu no dia 17 de novembro de 1922.

 

Foi para o Brasil aos 9 anos de idade com os seus pais, que pretendiam que seguisse uma vida comercial, e regressou a Portugal aos 18 anos.

 

É também conhecido o facto de ter tido uma filha de nome Armanda-Júlia Jorge.

 

Colaborou em diversos órgãos de comunicação social, como a revista anarquista “Luz e Vida”, que dirigiu entre fevereiro e julho de 1905 e que se publicou na cidade do Porto ou a revista “O vegetariano”, órgão da sociedade vegetariana, de que foi secretário de redação.

 

Para além de traduções diversas, escreveu poesia, ficção e ensaio, sendo duas das obras mais importantes as seguintes: “Irmânia” e “A questão social e a nova ciência de curar”.

 

Ângelo Jorge foi, segundo Duarte (2024) um dos militantes do naturismo, “uma corrente de pensamento com ideias e um estatuto relativamente autónomo no movimento libertário.”

 

O que é o naturismo?

 

A palavra naturismo, tal como muitas outras, é usada em vários contextos e apresenta significados diferentes. Assim, através de uma consulta rápida na internet encontramos duas definições: uma mais restrita que considera o naturismo como “uma forma de viver em harmonia com a Natureza caraterizada pela prática da nudez coletiva, com o propósito de favorecer a autoestima, o respeito pelos outros e pelo meio ambiente” e outra mais abrangente que define naturismo como “um conjunto de princípios éticos e comportamentais que preconizam um modo de vida baseado no retorno à natureza como a melhor maneira de viver e defendendo a vida ao ar livre, o consumo de alimentos naturais e a prática do nudismo, entre outras atitudes”.

 

O sociólogo João Freire num texto, adaptado da sua tese de doutoramento, publicado no jornal A Batalha, escreve que as práticas do naturismo, sendo muito variadas, podem ser enquadradas nas seguintes três categorias:

 

a.       Alimentação – repúdio pela alimentação carnívora e preferência por regimes vegetarianos ou mesmo frugívoros;

b.      A saúde – preferência por métodos naturais de tratamento e repúdio pela medicina e farmacopeia tradicionais;

c.        A oposição ao desporto visto como competição e a preferência pelo exercício físico e pela ginástica.

 

Em Portugal, de entre as pessoas que praticaram o naturismo, destacaram-se alguns militantes anarquistas. Um deles, Manuel Rodrigues, escreveu que “Naturismo e Anarquismo são conceções filosóficas que quase se confundem e de cuja realização na prática depende, sem dúvida, o bem-estar da Humanidade”.

 

Com uma ténue ligação aos Açores, para além de Ângelo Jorge, podemos referir o alentejano Gonçalves Correia. Gonçalves Correia, considerado anarquista tolstoiano, esteve em São Miguel em 1910, de passagem, e conversou com Francisco Soares Silva, diretor do jornal “Vida Nova”, tendo este publicado em quatro números daquela publicação quinzenal os seguintes artigos: “A caminho do ideal”, “Nós e os camponeses” e “Amor Livre”. Ângelo Jorge, um dos principais impulsionadores da Associação Vegetariana de Portugal, também escreveu para o jornal micaelense “Vida Nova” pelo menos dois textos: “A opinião dos outros” e “A propriedade”.

 

José Eduardo Reis, divide a vida de Ângelo Jorge em três fases. Na primeira fase, entre 1901 e 1910, Ângelo Jorge procura “difundir o ideal libertário” e “proclama a sua profética esperança no triunfo da revolução operária”. Na segunda fase, entre 1910 e 1913, Ângelo Jorge defende nos seus escritos a “adesão aos princípios terapeutas naturistas” e “as regras dietéticas ordenadoras de um regime alimentar frugívoro e vegetariano”. A última fase, entre 1914 e 1918, é caracterizada por uma abertura da consciência de Ângelo Jorge “ao sentido unitário e religioso do mundo”.

 

Por ainda não termos investigado com a profundidade desejada a vida e a obra de Ângelo Jorge, daremos a conhecer um pouco do seu pensamento, nas duas primeiras fases da sua vida.

 

Através da leitura de vários textos, nomeadamente da sua novela naturista “Irmânia”, constatamos que Ângelo Jorge defendia que havia um “só princípio curativo na Natureza: a própria Natureza” e sustentava que todos os males da humanidade poderiam ser curados através de uma alimentação racional, “sem recurso ao sacrifício inútil cruel e sistemático de seres animais, tendo por base a fruta”.

 

Sobre a questão da saúde, em 1911, Ângelo Jorge que, segundo Guadalupe Subtil, acreditava que era possível “num Mundo inteiro uma só Pátria, sem fronteiras como sem despotismos, sem doenças como sem dores”, escreveu:

 

“A Saúde é a condição básica, sine qua non, da existência humana à flor da terra, é ela o que constitui a harmonia vital.

 

Cada um dos nossos órgãos, com o seu modo particular de funcionamento é uma nota na harmonia formada pelo movimento incessante do organismo.

 

Se essa harmonia se quebra é porque o Homem infringiu as regras omniscientes da Harmonia Cósmica.

 

É erro grande, crime grande até, é supor-se que a doença seja um mal necessário e natural: como acreditar que a Natureza, sendo um todo harmónico e uno, tenha erros: tenha dissonâncias?

 

Não honram quanto devem o Criador os que tão grande ofensa à Obra do Criador fazem.”

 

Continuando a dar o conhecer o pensamento de Ângelo Jorge, recorremos aos seus escritos no jornal “Vida Nova” e na “Barréla”, que apresenta o subtítulo “Panfleto de crítica higiénica contra a podridão nacional”, onde o autor zurze, sem dó nem piedade, nos chamados anarquistas ortodoxos.

 

No jornal micaelense “Vida Nova”, encontrámos dois textos de Ângelo Jorge, o primeiro, publicado a 30 de junho de 1910, intitulado “A opinião dos outros” e o segundo com o título “A propriedade”, publicado no dia 31 de janeiro de 1911.

 

No segundo texto referido, sobre o anarquismo, Ângelo Jorge, escreve que só por falta de educação existente em Portugal aquela corrente de pensamento é considerada como sinónimo de “Bomba, Caos, Desordem, Pilhagem” e acrescenta que persiste a falsa ideia de que as pretensões dos anarquistas são o roubo e a “destruição de quanto existe: a Família, o Estado, a Propriedade”.

 

O autor concorda com a frase de Proudhon “A propriedade é um roubo” dizendo que a mesma “é ainda hoje duma justeza sem igual” e acrescenta “Ladrão é todo aquele que possui o supérfluo em detrimento dos que nem o necessário têm, o que não quer dizer, de forma alguma, que ele os houvesse roubado, no sentido restrito e legal em que este termo geralmente é entendido, mas sim que a posse do supérfluo em que ele se acha investido é ilegítima e iníqua em face da verdadeira razão que proclamam para todos o mesmo direito à vida”.

 

Ângelo Jorge termina o seu texto imaginando uma sociedade onde, como escreveu Vitor Hugo “a propriedade, esse grande direito humano, essa suprema liberdade, essa elevação do espírito sobre a matéria, essa soberania do homem interdita ao irracional, longe de ser suprimida, será democratizada e universalizada”.

 

O extrato que se apresenta, a seguir, ilustra bem a utopia que guiou a vida do autor:

 

“Pomares magníficos onde as frutas mais odoríferas loirejam; hortas esplendidas onde vicejam as mais belas plantas leguminosas; jardins ideais onde as flores mais raras e mimosas se elevam; florestas impenetráveis onde vivem a sua vida silenciosa as árvores as mais vetustas; terras as mais férteis e as mais ricas onde o trigo cresce sob o olhar acariciante do sol - tudo, tudo será a pertença ilimitada e natural de todos, a todos oferecereis o pão e o repouso, a vida do coração, e todos terão o direito imprescritível de vos revolver as entranhas, de vos fecundar com o esforço hercúleo do seu braço! Livre será a terra, como livre é o mar, como livre é o ar, como livre é a água e livre será sobre a terra livre o Homem, a obra mais perfeita da Natureza pelo pensamento e pelo sentimento, pela inteligência e pela razão, pelo amor e pela dor”.

 

Sobre o anarquismo e combatendo o pensamento único, Ângelo Jorge escreveu no primeiro número de “Barréla” o seguinte:

 

“Em Portugal, tudo se falsifica: eis a dolorosa verdade. Caracteres e géneros alimentícios, ideias e consciências, tudo neste delicioso país de laranjeiras em flor e de burros enfatuados sofre a ação fundamentalmente nefasta dos adulteradores de má morte. (…)

O anarquismo, esse mesmo, não pode escapar à infausta sina.

 

O anarquismo, em Portugal, está, como tudo o mais, falsificado”.

 

“Em nome da inviolável e da imprescritível liberdade humana”, Ângelo Jorge escreve:

 

“Abaixo as coleiras, que o homem não é cão!

 

Abaixo as celas, as prisões, as gargalheiras, quer elas ostentem o distinto negro da Opressão, quer nos mostrem o rótulo doirado da Anarquia!”

 

Terminamos este texto com a citação de dois poemas (com a grafia atualizada) publicados, o primeiro no livro “Espírito Sereno”, datado de 1912, e o segundo no livro “Dôr Humana”, publicado em 1908.

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A Fábrica

 

Paro em frente da fábrica maldita

Que se se ergue, altiva a meio duma rua;

E ao vê-la a alma queda-se contrita

E o coração, de dor, no peito estua.

 

Meio-dia na torre. O monstro apita.

A legião dos párias tumultua.

Um grande burburinho a rua agita,

Eleva-se no próprio ar flutua.

 

Oh! quanta dor a vida não traduz,

- Penso não- quanto esforço nunca visto,

Vivida assim nas fábricas sem luz!

 

Trabalhador escravo, em face disto,

Eu julgo mais pesada a tua cruz

Do que a cruz em que foi pregado Cristo!

 

Prelúdio

 

Sonho ideal d’Amor e d’Igualdade

Que à minh’alma desceste em certo dia

Sê sempre, ó Sonho, o meu constant guia

Nos labirintos maus da Sociedade.

 

Dá-me paixão, vigor, tenacidade,

Dá-me altivez e fogo e rebeldia.

Na guerra santa ao Mal e à Tirania,

Na luta em prol da Paz, da Liberdade

 

Meu pobre coração despedaçado,

Dentro em meu peito pulsa, revoltado

Contra Deus, contra a Lei, a Iniquidade.

 

Abrasa-te ao calor da minha Crença,

Para que possa a tua dor imensa

Conter a imensa dor da Humanidade.

 

II

 

Não busco, ao sol da abominável Glória

Alto empunhar a luzidia espada,

Ser um segundo Átila na História

 

Quero mostrar à plebe ensanguentada

Toda a origem do Mal qie a fere, oprime,

E a fez inerte, escrava, acorrentada;

 

Quero mostrar-lhe a iniquidade e o crime

Que o trono encerra o Vaticano:

Tudo o que a Lei e Autoridade exprime;

 

Quero rir-me de Deus, velho tirano,

Que há dez mil anos, trágico, iracundo,

Traz oprimido o Pensamento Humano.

 

Quero n’um brado intenso, audaz, profundo,

Combater a Opressão e a Tirania,

E propagar por todo o mundo,

O amor, a Liberdade e a Rebeldia!

 

 

Bibliografia

 

Barbosa, I. (2006). O Utopista portuense Ângelo Jorge: Subsídios para a sua biografia. In E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 5. (http://www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas/revista/index.htm).

 

Duarte, D. (2024). O anarquismo e a arte de Governar. Portugal (1890-1930). Lisboa, Fora de Jogo. 365 pp.

 

Freire. J. (1997). O Naturismo na História do Movimento Libertário em Portugal. In “A Batalha”, nº 165, setembro-outubro de 1997.

 

Jorge, A. (1908). Dor Humana. Porto, Centro Literário Paz e Verdade. 59 pp.

 

Jorge, A. (1912). Espírito Sereno. Porto, Tip. De Francisco Joaquim de Almeida. 106 pp.

 

Jorge, A. (2004). Irmânia: novela naturista. Vila Nova de Famalicão, Quasi. 111 pp.

 

Subtil, G. (2006), Irmânia a ilha utópica de Ângelo Jorge. In “Utopia”, nº 21, janeiro-junho. pp 21-25

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