Apontamentos
sobre Ângelo Jorge
Poucos
pormenores são conhecidos sobre a biografia do escritor e jornalista Ângelo Jorge.
Sabe-se que nasceu na Cidade do Porto, no dia 4 de setembro de 1883, e
faleceu no dia 17 de novembro de 1922.
Foi para o Brasil aos 9 anos de idade com
os seus pais, que pretendiam que seguisse uma vida comercial, e regressou a
Portugal aos 18 anos.
É também conhecido o facto de ter tido
uma filha de nome Armanda-Júlia Jorge.
Colaborou em diversos órgãos de
comunicação social, como a revista anarquista “Luz e Vida”, que dirigiu entre
fevereiro e julho de 1905 e que se publicou na cidade do Porto ou a revista “O
vegetariano”, órgão da sociedade vegetariana, de que foi secretário de redação.
Para
além de traduções diversas, escreveu poesia, ficção e ensaio, sendo duas das
obras mais importantes as seguintes: “Irmânia” e “A questão social e a nova
ciência de curar”.
Ângelo
Jorge foi, segundo Duarte (2024) um dos militantes do naturismo, “uma corrente
de pensamento com ideias e um estatuto relativamente autónomo no movimento
libertário.”
O
que é o naturismo?
A
palavra naturismo, tal como muitas outras, é usada em vários contextos e apresenta
significados diferentes. Assim, através de uma consulta rápida na internet
encontramos duas definições: uma mais restrita que considera o naturismo como
“uma forma de viver em harmonia com a Natureza caraterizada pela prática da
nudez coletiva, com o propósito de favorecer a autoestima, o respeito pelos
outros e pelo meio ambiente” e outra mais abrangente que define naturismo como
“um conjunto de princípios éticos
e comportamentais que preconizam um modo de vida baseado no retorno à natureza como a melhor maneira de viver e defendendo a
vida ao ar livre, o consumo de alimentos naturais e a prática do nudismo, entre
outras atitudes”.
O sociólogo João Freire num texto, adaptado da
sua tese de doutoramento, publicado no jornal A Batalha, escreve que as
práticas do naturismo, sendo muito variadas, podem ser enquadradas nas
seguintes três categorias:
a.
Alimentação – repúdio pela alimentação
carnívora e preferência por regimes vegetarianos ou mesmo frugívoros;
b.
A saúde – preferência por métodos naturais
de tratamento e repúdio pela medicina e farmacopeia tradicionais;
c.
A
oposição ao desporto visto como competição e a preferência pelo exercício
físico e pela ginástica.
Em
Portugal, de entre as pessoas que praticaram o naturismo, destacaram-se alguns
militantes anarquistas. Um deles, Manuel Rodrigues, escreveu que “Naturismo e
Anarquismo são conceções filosóficas que quase se confundem e de cuja
realização na prática depende, sem dúvida, o bem-estar da Humanidade”.
Com
uma ténue ligação aos Açores, para além de Ângelo Jorge, podemos referir o
alentejano Gonçalves Correia. Gonçalves Correia, considerado anarquista
tolstoiano, esteve em São Miguel
em 1910, de passagem, e conversou com Francisco Soares Silva, diretor do jornal
“Vida Nova”, tendo este publicado em quatro números daquela publicação
quinzenal os seguintes artigos: “A caminho do ideal”, “Nós e os camponeses” e “Amor
Livre”. Ângelo
Jorge, um dos principais impulsionadores da Associação Vegetariana de Portugal,
também escreveu para o jornal micaelense “Vida Nova” pelo menos dois textos: “A
opinião dos outros” e “A propriedade”.
José
Eduardo Reis, divide a vida de Ângelo Jorge em três fases. Na primeira fase,
entre 1901 e 1910, Ângelo Jorge procura “difundir o ideal libertário” e
“proclama a sua profética esperança no triunfo da revolução operária”. Na
segunda fase, entre 1910 e 1913, Ângelo Jorge defende nos seus escritos a
“adesão aos princípios terapeutas naturistas” e “as regras dietéticas
ordenadoras de um regime alimentar frugívoro e vegetariano”. A última fase,
entre 1914 e 1918, é caracterizada por uma abertura da consciência de Ângelo
Jorge “ao sentido unitário e religioso do mundo”.
Por
ainda não termos investigado com a profundidade desejada a vida e a obra de
Ângelo Jorge, daremos a conhecer um pouco do seu pensamento, nas duas primeiras
fases da sua vida.
Através
da leitura de vários textos, nomeadamente da sua novela naturista “Irmânia”,
constatamos que Ângelo Jorge defendia que havia um “só princípio curativo na
Natureza: a própria Natureza” e sustentava que todos os males da humanidade
poderiam ser curados através de uma alimentação racional, “sem recurso ao
sacrifício inútil cruel e sistemático de seres animais, tendo por base a
fruta”.
Sobre a questão da
saúde, em 1911, Ângelo Jorge que, segundo Guadalupe Subtil, acreditava que era
possível “num Mundo
inteiro uma só Pátria, sem fronteiras como sem despotismos, sem doenças como
sem dores”, escreveu:
“A
Saúde é a condição básica, sine qua non, da existência humana à flor da terra,
é ela o que constitui a harmonia vital.
Cada
um dos nossos órgãos, com o seu modo particular de funcionamento é uma nota na
harmonia formada pelo movimento incessante do organismo.
Se
essa harmonia se quebra é porque o Homem infringiu as regras omniscientes da
Harmonia Cósmica.
É
erro grande, crime grande até, é supor-se que a doença seja um mal necessário e
natural: como acreditar que a Natureza, sendo um todo harmónico e uno, tenha
erros: tenha dissonâncias?
Não
honram quanto devem o Criador os que tão grande ofensa à Obra do Criador
fazem.”
Continuando
a dar o conhecer o pensamento de Ângelo Jorge, recorremos aos seus escritos no
jornal “Vida Nova” e na “Barréla”, que apresenta o subtítulo “Panfleto de
crítica higiénica contra a podridão nacional”, onde o autor zurze, sem dó nem
piedade, nos chamados anarquistas ortodoxos.
No
jornal micaelense “Vida Nova”, encontrámos dois textos de Ângelo Jorge, o
primeiro, publicado a 30 de junho de 1910, intitulado “A opinião dos outros” e
o segundo com o título “A propriedade”, publicado no dia 31 de janeiro de 1911.
No
segundo texto referido, sobre o anarquismo, Ângelo Jorge, escreve que só por
falta de educação existente em Portugal aquela corrente de pensamento é
considerada como sinónimo de “Bomba, Caos, Desordem, Pilhagem” e acrescenta que
persiste a falsa ideia de que as pretensões dos anarquistas são o roubo e a
“destruição de quanto existe: a Família, o Estado, a Propriedade”.
O
autor concorda com a frase de Proudhon “A propriedade é um roubo” dizendo que a
mesma “é ainda hoje duma justeza sem igual” e acrescenta “Ladrão é todo aquele
que possui o supérfluo em detrimento dos que nem o necessário têm, o que não
quer dizer, de forma alguma, que ele os houvesse roubado, no sentido restrito e
legal em que este termo geralmente é entendido, mas sim que a posse do
supérfluo em que ele se acha investido é ilegítima e iníqua em face da
verdadeira razão que proclamam para todos o mesmo direito à vida”.
Ângelo
Jorge termina o seu texto imaginando uma sociedade onde, como escreveu Vitor
Hugo “a propriedade, esse grande direito humano, essa suprema liberdade, essa
elevação do espírito sobre a matéria, essa soberania do homem interdita ao
irracional, longe de ser suprimida, será democratizada e universalizada”.
O
extrato que se apresenta, a seguir, ilustra bem a utopia que guiou a vida do
autor:
“Pomares
magníficos onde as frutas mais odoríferas loirejam; hortas esplendidas onde
vicejam as mais belas plantas leguminosas; jardins ideais onde as flores mais
raras e mimosas se elevam; florestas impenetráveis onde vivem a sua vida
silenciosa as árvores as mais vetustas; terras as mais férteis e as mais ricas
onde o trigo cresce sob o olhar acariciante do sol - tudo, tudo será a pertença
ilimitada e natural de todos, a todos oferecereis o pão e o repouso, a vida do
coração, e todos terão o direito imprescritível de vos revolver as entranhas,
de vos fecundar com o esforço hercúleo do seu braço! Livre será a terra, como
livre é o mar, como livre é o ar, como livre é a água e livre será sobre a
terra livre o Homem, a obra mais perfeita da Natureza pelo pensamento e pelo
sentimento, pela inteligência e pela razão, pelo amor e pela dor”.
Sobre
o anarquismo e combatendo o pensamento único, Ângelo Jorge escreveu no primeiro
número de “Barréla” o seguinte:
“Em Portugal, tudo
se falsifica: eis a dolorosa verdade. Caracteres e géneros alimentícios, ideias
e consciências, tudo neste delicioso país de laranjeiras em flor e de burros
enfatuados sofre a ação fundamentalmente nefasta dos adulteradores de má morte.
(…)
O anarquismo, esse
mesmo, não pode escapar à infausta sina.
O anarquismo, em
Portugal, está, como tudo o mais, falsificado”.
“Em nome da
inviolável e da imprescritível liberdade humana”, Ângelo Jorge escreve:
“Abaixo as
coleiras, que o homem não é cão!
Abaixo as celas,
as prisões, as gargalheiras, quer elas ostentem o distinto negro da Opressão,
quer nos mostrem o rótulo doirado da Anarquia!”
Terminamos
este texto com a citação de dois poemas (com a grafia atualizada) publicados, o
primeiro no livro “Espírito Sereno”, datado de 1912, e o segundo no livro “Dôr
Humana”, publicado em 1908.
.
A Fábrica
Paro em frente da fábrica
maldita
Que se se ergue, altiva a
meio duma rua;
E ao vê-la a alma
queda-se contrita
E o coração, de dor, no
peito estua.
Meio-dia na torre. O
monstro apita.
A legião dos párias
tumultua.
Um grande burburinho a
rua agita,
Eleva-se no próprio ar
flutua.
Oh! quanta dor a vida não
traduz,
- Penso não- quanto
esforço nunca visto,
Vivida assim nas fábricas
sem luz!
Trabalhador escravo, em
face disto,
Eu julgo mais pesada a
tua cruz
Do que a cruz em que foi
pregado Cristo!
Prelúdio
Sonho ideal d’Amor e
d’Igualdade
Que à minh’alma desceste
em certo dia
Sê sempre, ó Sonho, o meu
constant guia
Nos labirintos maus da
Sociedade.
Dá-me paixão, vigor,
tenacidade,
Dá-me altivez e fogo e
rebeldia.
Na guerra santa ao Mal e
à Tirania,
Na luta em prol da Paz,
da Liberdade
Meu pobre coração
despedaçado,
Dentro em meu peito
pulsa, revoltado
Contra Deus, contra a
Lei, a Iniquidade.
Abrasa-te ao calor da
minha Crença,
Para que possa a tua dor
imensa
Conter a imensa dor da
Humanidade.
II
Não busco, ao sol da
abominável Glória
Alto empunhar a luzidia
espada,
Ser um segundo Átila na
História
Quero mostrar à plebe
ensanguentada
Toda a origem do Mal qie
a fere, oprime,
E a fez inerte, escrava,
acorrentada;
Quero mostrar-lhe a
iniquidade e o crime
Que o trono encerra o
Vaticano:
Tudo o que a Lei e
Autoridade exprime;
Quero rir-me de Deus,
velho tirano,
Que há dez mil anos,
trágico, iracundo,
Traz oprimido o
Pensamento Humano.
Quero n’um brado intenso,
audaz, profundo,
Combater a Opressão e a
Tirania,
E propagar por todo o
mundo,
O amor, a Liberdade e a
Rebeldia!
Bibliografia
Barbosa, I. (2006). O Utopista
portuense Ângelo Jorge: Subsídios para a sua biografia. In E-topia: Revista
Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 5. (http://www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas/revista/index.htm).
Duarte, D. (2024). O
anarquismo e a arte de Governar. Portugal (1890-1930). Lisboa, Fora de Jogo.
365 pp.
Freire. J. (1997). O
Naturismo na História do Movimento Libertário em Portugal. In “A Batalha”, nº
165, setembro-outubro de 1997.
Jorge, A. (1908). Dor
Humana. Porto, Centro Literário Paz e Verdade. 59 pp.
Jorge, A. (1912).
Espírito Sereno. Porto, Tip. De Francisco Joaquim de Almeida. 106 pp.
Jorge, A. (2004).
Irmânia: novela naturista. Vila Nova de Famalicão, Quasi. 111 pp.
Subtil, G. (2006),
Irmânia a ilha utópica de Ângelo Jorge. In “Utopia”, nº 21, janeiro-junho. pp
21-25
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