Apontamentos
sobre a escravatura nos Açores
O
tema da escravatura nos Açores, ou mesmo no todo nacional, é quase tabu. Na
sociedade quase não se fala no assunto e ainda não foi devidamente tratado nas
nossas escolas. Com efeito ao longo de 11 anos de escolaridade, primária,
segundo ciclo, terceiro ciclo e ensino secundário, nunca ouvi falar no assunto
e este ano tendo perguntado aos meus alunos do 9º ano de escolaridade da disciplina
de Cidadania e Desenvolvimento, a resposta foi a de que não tinham conhecimento
da existência de escravos nos Açores.
Pelos
vistos, o silêncio mantinha-se apesar da legislação que proibia que se falasse
em escravos, referida por Ana Barradas, no seu livro “Ministros da noite- Livro
negro da Expansão Portuguesa”, que abaixo se transcreve, ser muito antiga e não
estar em vigor:
“Todo
o português como todo o indivíduo de outra nacionalidade residente no
território português que intencionalmente, por discursos pronunciados em
reuniões públicas ou por manifestos, brochuras, livros, jornais, ou outras
publicações destinadas a ser vendidas ou distribuídas gratuitamente ao público,
difundam falsas informações a fim de demonstrar a existência da escravatura ou
do tráfico de escravos nas colónias portuguesas, será punido com multa de
2 000$ a 20 000$ ou com prisão maior até dois anos, e poderá ainda se
expulso do território português. (Código de Trabalho dos Indígenas das Colónias
Portuguesas da África, 6 de dezembro de 1928)”
Na
qualidade de professor da disciplina referida, onde um dos temas a abordar é o
dos direitos humanos, comecei a pesquisar sobre o assunto, tendo no passado mês
de dezembro assistido à gravação do 7º Encontro com História, promovido pela
Históriasábias-Associação Cultural, sobre a “Escravatura nos Açores (séculos
XV-XIX).
Ao
ouvir a Professora Doutora Margarida Vaz do Rego Machado falar sobre o
testamento de um dos maiores negociantes dos Açores do seu tempo, NMRA-Nicolau
Maria Raposo do Amaral (1737-1816), onde este pedia que uma sua escrava fosse
mantida e bem tratada pelos seus filhos nas suas enfermidades, lembrei-me que
possuía alguns documentos que me foram cedidos para consulta por um descendente
daquele homem de negócios.
Todos
os exemplos referidos abaixo, foram extraídos da documentação referida.
Em
carta de 7 de fevereiro de 1777, dirigida a Manuel Correia Branco, NMRA lamenta
não poder ser útil porque não existe na ilha uma mulata como a pretendida, mas
que fará as diligências para “comprar alguma que não eceda (?) de 14 anos, e
que não seja feia, e se a puder comprar a mandarei ensinar nesta sua Casa de
forma que fosse servir a Fidalga Minha Senhora.”
Num
documento intitulado “Do 4º Copiador de NICOLAU MARIA RAPOSO DO AMARAL (PAI) cópia
em 25 de Julho de 1782) a propósito das instalações do “Colégio que foi dos
denominados Jesuítas da ilha de São Miguel”, aquele homem de negócios
queixava-se de que “vem a ficar dos sobreditos 18 cubículos, 12 para acomodação
da minha família”.
E
para ele o que era a família?
Aqui
fica a resposta: “minha mulher, cinco filhas, quatro filhos, uma ama, duas
criadas, quatro escravas, e criados e três escravos…”
A
12 de maio de 1784, em carta dirigida a João Filipe da Fonseca, NMRA escreve
que poderá mandar um navio de Angola para o Rio de Janeiro com escravos.
No
dia 6 de agosto de 1785 NMRA, em carta dirigida ao mesmo destinatário, depois
de escrever que sentia “que o espírito da lei deve ser conservado nestas Ilhas
para a liberdade dos Negros conduzidos da nossa América” acrescenta o seguinte:
“É incomparável o incómodo que aqui se padece com a falta dos Escravos: a minha
casa não pode servir-se doutro modo, e visto que V.M. me diz, parece que estou
na rigorosa obrigação de dar a liberdade a uns poucos que me acompanharam do
Brasil há anos debaixo da boa fé.”
Numa
carta datada de 6 de agosto de 1785, dirigida a João Filipe da Fonseca, NMRA
volta a referir-se à escravatura na ilha de São Miguel, do seguinte modo:
“Sinto
a notícia que V.M. me deu, que o espírito da Lei deve ser conservado nestas
Ilhas para a liberdade dos Negros conduzidos da nossa América.
É
incomparável o incómodo que aqui se padece com a falta dos Escravos: a minha
casa não pode servir-se doutro modo, e visto que V.M. me diz, parece que estou
na rigorosa obrigação de dar liberdade a uns poucos que me acompanharam do
Brasil há 17 anos debaixo de boa fé.”
Numa
carta datada de 20 de março de 1796, dirigida a José Inácio de Sousa Melo, da
ilha da Madeira, a dado passo pode-se ler o seguinte:
“Remeto
mais a V.M. uma Negra minha escrava, por nome Rosa, que se criou de pequena
nesta Casa donde aprendeu todo o serviço, cuja Negra comprei a uma filha de
Dionísio da Costa o Marchante, como consta da Escritura que remeto a V.M. com a certidão da sua idade, e Procuração
para que faça esta Venda, ou na Praça, ou por ajuste particular o mais breve
que V.M. puder, e logo que ela chegar.
Esta
escrava não teve vício algum até agora: mas eu a mando vender porque me consta
que ela se desonestou com um escravo desta Casa de que penso vai pejada, e a
não lhe acontecer esta desgraça, eu a não venderia por todo o dinheiro que, por
ela me oferecessem, e seria forra por minha morte, e de minha Mulher.
O
que eu digo a V.M. é a mesma verdade, e estimarei que ela ache uma boa Casa que
a compre.
O
seu líquido rendimento empregará V.M. na receita que peço, podendo mandar-me
tudo por este Navio, ou por outro que fique a partir para esta Ilha: aliás: o
remeterá V.M. em letras para Lisboa como lhe recomendo. Se V.M. quiser ficar
com esta Escrava, o pode fazer por menos dez mil reis do maior preço que por
ela lhe oferecerem: isto é, no caso que ela lhe agrade.”
A
6 de outubro de 1797, em carta dirigida a Jerónimo José Carvalho, menciona que
possui três escravos. Caso contrário seria ele obrigado a varrer a cavalariça e
a carregar água para a sua casa.
A
8 de março de 1800, em carta dirigida a João Filipe, NMRA menciona a libertação
de escravos “pelo indulto da Lei não obstante algumas Sentenças do Tribunal da
Relação que os obriga à escravidão, fundadas em que a Lei se não estende para
estas ilhas, mas só sim para o reino” e prossegue afirmando que ninguém se
arrisca a mandar vir negros do Brasil pois correm o risco de os perder.
Em
1802, em carta de 8 de agosto, dirigida a Manuel Tomás, escreve que “pensa
mandar a Lisboa um escravo pardo para aprender a boleeiro.”
Em
carta enviada para João do Rego Falcão, de Pernambuco, escreve sobre dois
escravos que comprou na Ribeira Grande pedindo que os venda, porque
“degeneraram no vício de amancebados com diversas concubinas” e porque passaram
a querer revoltar-se contra ele.
Em
carta dirigida ao já referido João do Rego Falcão, datada de 14 de novembro de
1804, faz uma série de encomendas, como
mel, algodão, paus de jacarandá, etc. e “um escravo Molecão bem feito de pé, e
perna , e que possa carregar já um barril de água: sendo de boa Nação, que não
seja Cabondá, Moxecongo ou Mujólo e outras Nações reprovadas, mas sim das
melhores Nações, bem como “três negras moleconas de boa cara, raparigas de doze
a quinze anos de idade pouco mais ou menos, para que possam amassar pão, e
servir bem uma casa, sendo de boas Nações como levo recomendado, e nada das
raças reprovadas.”
A
6 de outubro de 1805, NMRA escreve a João do Rego Falcão acusando a receção dos
escravos pedidos. Assim, segundo ele “o Moleque, e Negrinhas chegaram vivos. O
Moleque não se sabe da sua pátria, e só sim que é da Costa da Malagueta ou
Cafraria. Uma Negrinha Cabondá, sendo das mais péssimas nações, e duas com
efeito Benguelas”.
Em
1807, continuava o tráfico de escravos. Com efeito, NMRA em carta dirigida a
Joaquim José da Fonseca, escreve que “quer vender uma escrava negra porque
desatendeu a uma neta”. Não quer que a mesma fique na ilha e pede que aquele “a
venda para casa caridosa ainda que seja por menos do seu valor”.
Quando
se aborda a questão da abolição da escravatura, o primeiro passo terá sido dado
em Portugal, em 1761, através de um
alvará que ordenava a libertação de todos os escravos negros que chegassem à
metrópole. A abolição completa, em todo o território controlado por Portugal,
pelo menos no papel, só ocorreria a 25 de fevereiro de 1869.
Apesar da legislação aprovada, na prática a
exploração extrema da força de trabalho humana continuou de tal modo que num
livro publicado em 1944, Norton de Matos que foi governador de Angola, escreveu
o seguinte: “Manteve-se (…) a escravatura em Angola e noutras colónias
africanas, quase até aos presentes dias. Encoberta, camuflada, sofismada, ela
continuava a existir, e por certo, desmereceria se não afirmasse que a fui
encontrar sob diversos nomes ou disfarces na província do Ultramar português
que, em 1912 e anos seguintes, governei”.
A
história não pode ser apagada, nem julgada com os olhos de hoje, tanto mais que
a escravatura continua existindo, havendo nos nossos dias mais pessoas em
situação de escravidão do que no passado. De acordo com a associação
ACEGIS-Associação para a Cidadania, Empreendedorismo, Género e Inovação Social,
no mundo existem 40,3 milhões de pessoas vítimas da escravatura moderna, sendo
um quarto delas crianças.
Se
não podemos corrigir os erros do passado, podemos agir de modo a impedir que os
mesmos se perpetuem no presente e evitar que continuem no futuro, o primeiro
passo a dar é estudar a história, não esconder nada às novas gerações e
denunciar todas as situações de escravidão mais ou menos camufladas.
Para
saber mais:
Barradas,
A. (1991). Ministros da noite-Livro Negro da Expensão Portuguesa. Lisboa: Antígona.
Casas,
B. (1990). Brevíssima Relação da Destruição das Índias. Lisboa: Antígona.
Mendes,
L. (1977). Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a
Costa d´África e o Brasil. Porto: Publicações Escorpião.
Imagem: https://ensina.rtp.pt/explicador/a-escravatura-nos-seculos-xv-e-xvi-h47/

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