quarta-feira, 31 de maio de 2017

Ainda sobre Ilídio Sardoeira



Ainda sobre Ilídio Sardoeira

Publiquei, recentemente, neste jornal dois textos sobre o Dr. Ilídio Sardoeira e continuo a pesquisar informações acerca da sua vida e obra, nomeadamente nos jornais de Ponta Delgada, durante o período em que ele viveu em Ponta Delgada e lecionou na Escola Secundária Antero de Quental.

Hoje, darei a conhecer um episódio ocorrido no funeral do prestigiado matemático Bento de Jesus Caraça (1901-1948) e algumas informações colhidas em edições antigas do Correio dos Açores.

Em junho de 1948, faleceu Bento de Jesus Caraça, grande vulto da ciência e cultura de Portugal que foi um destacado dirigente da oposição ao Estado Novo.

O seu funeral, realizado a 1 de julho, foi uma grande de manifestação de pesar pelo seu falecimento e de oposição ao governo do Dr. Oliveira Salazar, que nem depois de morto o deixou em paz. Naquele participou o Dr. Ilídio Sardoeira que ficou com a responsabilidade de fazer o seu elogio fúnebre.

A polícia política, que se infiltrou no meio de todos os antifascistas e amigos que quiseram prestar uma última homenagem a Bento de Jesus Caraças, impediu que o Dr. Ilídio Sardoeira usasse da palavra, acabando o texto do elogio fúnebre sido depositado na urna com o corpo.

Numa consulta aos jornais publicados em São Miguel, descobrimos que o Dr. Ilídio Sardoeira teve uma colaboração muito reduzida nos mesmos, que eram porta-vozes do regime salazarista como se poderá comprovar pelos artigos de opinião publicados e pela parcialidade com que foi tratada a campanha eleitoral para a presidência da república que colocou, em 1958, frente a frente os candidatos Américo Tomás e Humberto Delgado.

No ano referido, no Correio dos Açores, apenas encontramos um poema intitulado “Vale das Furnas”, dedicado à memória de Afonso Duarte, que abaixo se transcreve:

Um côncavo jardim de ramos nascentes
Com píncaros de assombro vigiando;
Um coração de fogo nas raízes
Primaveras de cor aos olhos dando.

Líquida maravilha de água e pedra
É uma concha, à noite, de levar …
Alto, o silêncio alegre das estrelas
Casa-se ao canto triste que é de mar.

Em 1989, a Escola Secundária Antero de Quental editou o conto “A Princesa, o Pastor e o Rei”, que havia sido publicado no jornal “Comércio do Porto, em 1969, onde Ilídio Sardoeira apresenta uma versão sobre a Lenda das Sete Cidades.

Como se pode ler na brochura, a iniciativa daquela escola foi uma “singela e justa HOMENAGEM da Escola Secundária Antero de Quental, onde foi PROFESSOR e fez discípulos, onde foi “SEMEADOR E SEMENTE”, semente que floriu pela força da amizade”.

A sessão de lançamento do livro ocorreu no dia 15 de novembro, na Biblioteca da Escola Secundária Antero de Quental, tendo a obra sida apresentada pelo Prof. Doutor José de Almeida Pavão que também foi docente daquele estabelecimento de ensino e amigo e admirador de Ilídio Sardoeira.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31242, 31 de maio de 2017, p. 16)

terça-feira, 30 de maio de 2017

A Revista Pedagógica e os animais


A Revista Pedagógica e os animais

Como escrevi no último texto desta série, no próximo dia 5 de junho, Dia da Região, Maria Evelina de Sousa será agraciada com a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico.

O seu trabalho, em prol de uma sociedade açoriana melhor, até hoje não foi reconhecido e a sua obra ainda não mereceu o necessário estudo e a devida divulgação.

De entre o que ela fez, destaco a fundação, direção e redação da “Revista Pedagógica”, que, entre 1909 e 1915, para além de estar ao serviço da educação e dos professores, prestou um grande contributo à cultura, à moral, à igualdade de género e à causa animal.

No seu combate pelo respeito aos animais, Maria Evelina de Sousa contou com diversas colaborações, algumas das quais de figuras prestigiadas a nível nacional, como Luís Leitão, que foi um grande defensor dos direitos da criança e dos animais, e José Fontana da Silveira, notável jornalista e escritor autor de inúmeros livros para crianças.

A Revista Pedagógica não se limitou à defesa dos animais ditos de companhia, publicou textos contra a caça, em defesa das aves e contra práticas cruéis, como as touradas.

Sobre este assunto, transcrevo o poema “Na tourada”, da autoria de José Batista, publicado em abril de 1915.

Entra na arena o touro, furioso,
Arremetendo contra o cavaleiro.
Que, impávido, lhe crava, bem certeiro,
Um ferro no cachaço musculoso.

Solta a fera um rígido doloroso,
A que responde o redondel inteiro.
N’uma salva de palmas ao toureiro,
Vitoriando o feito valoroso.

D’um camarote chovem frescas flores,
Arremessadas pela nívea mão
De donzelas lindas como amores!...

Tão lindas, sim, mas parecendo feias…
Porque se apaga o brilho da paixão
Em quem jubila com dores alheias.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31241, 30 de maio de 2017, p.14)

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A alimentação vegetariana e o pioneirismo de Amílcar de Sousa



A alimentação vegetariana e o pioneirismo de Amílcar de Sousa

“Leitor! Queres ter saúde? Entrega-te à Natureza, cumpre as suas leis, não a ofendas. E serás outro homem, amarás a Verdade e o Bem e a Moral” (Amílcar de Sousa, O Vegetariano, Janeiro de 1914)

A 17 de abril deste ano, a Assembleia da República aprovou a Lei nº11/2017 que estabelece a obrigatoriedade da existência de uma opção vegetariana nas ementas das cantinas e refeitórios públicos.

De acordo com a referida lei, a obrigatoriedade depende de haver procura e em caso desta ser pequena “as entidades gestoras das cantinas podem estabelecer um regime de inscrição prévio de consumidores da opção vegetariana”.

A lei é também clara quando define opção vegetariana como “a que assenta em refeições que não contenham quaisquer produtos de origem animal”. Trata-se, portando, da opção alimentar que é conhecida como vegetarianismo estrito que, segundo a Associação Vegetariana Portuguesa, “para além da carne, exclui todos os alimentos de origem animal, como laticínios, os ovos e o mel”.

O caminho para chegar à situação atual foi muito longo, milenar. Com efeito, se várias pessoas ao longo dos tempos fizeram a sua alimentação excluindo quaisquer produtos de origem animal, as organizações vegetarianas são mais recentes, tendo a primeira surgido em 1847, em Manchester. Em Portugal, só em 1908 (ou 1911?), surgiu a SVP - Sociedade Vegetariana de Portugal, e nos Açores, em 2016, foi criada a Associação Vegana dos Açores.

Se há dúvidas quanto à data de fundação da SVP, há consenso quanto ao pioneiro do vegetarianismo em Portugal, apontando todos os autores o nome do médico Amílcar Augusto Queirós de Sousa, que nasceu em Cheires, Alijó, em 1876, e faleceu, em 1940, no Porto.

Formado em medicina pela Universidade de Coimbra, Amílcar de Sousa fundou e dirigiu a revista mensal “O Vegetariano” e foi responsável pela criação da Sociedade Vegetariana de Portugal, tendo sido o seu primeiro presidente.

Para além da sua dedicação à divulgação do vegetarianismo, Amílcar de Sousa escreveu vários livros sobre saúde, alimentação, o vegetarianismo e a paz, tendo escrito uma novela intitulada “Redenção”.

Amílcar de Sousa foi, também, um grande adepto do pedestrianismo. Com efeito, caminhava dezenas de quilómetros a pé, descalço, sem apresentar sinais de cansaço, tendo uma vez percorrido mais de 160 km, de Lisboa a Sines.

Amílcar de Sousa era conhecido nos Açores, quer através da revista “O vegetariano”, que tinha alguns assinantes no arquipélago, quer através dos jornais. Um deles, o jornal “A República”, em 1915, publicou uma reportagem sobre “A religião do naturismo” que inclui uma entrevista com aquele médico.

Embora não esteja correto classificar o naturismo como uma religião, pela leitura das respostas de Amílcar de Sousa ficamos a saber que também não é uma mera questão de alimentação, como se poderá constatar através do extrato seguinte:

“As cadeias estão cheias de criminosos, e foi principalmente o uso do álcool que os levou ao crime. Os hospitais estão a abarrotar de doentes, devido às complicações da culinária. A vida é cada vez mais onerosa, pelas exigências do estomago. Ora, com o naturismo, dispensando todas as bebidas, e por consequência o álcool, não se cria criminosos; não precisando da cozinha, evita a maior parte das doenças; limitando aos frutos a alimentação, estabelece o equilíbrio da economia doméstica”.

Perguntado se com o naturismo as doenças desapareceriam, respondeu, citando um “escritor inglês: Se todos os homens fossem naturistas, os médicos passariam a cultivadores de frutos”.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31237, 25 de maio de 2017, p.14)

terça-feira, 23 de maio de 2017

Maria Evelina de Sousa: Defensora dos animais vai ser homenageada


Maria Evelina de Sousa: Defensora dos animais vai ser homenageada

Embora não dê grande importância as distinções conferidas a personalidades e instituições pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, pois, a par de pessoas que pela sua ação foram e constituem exemplo para os demais, há outras que pouco fizeram desinteressadamente para a sociedade onde vivem ou viveram.

De entre as pessoas já distinguidas, destaco a figura de Alice Moderno, que foi exemplo em várias áreas da atividade humana, com destaque para o movimento feminista e de defesa dos animais.

Com uma vida que se cruzou com a de Alice Moderno, Maria Evelina de Sousa (1 de janeiro de 1879 – 12 de fevereiro de 1946) foi uma distinta professora primária que foi pioneira na criação de uma biblioteca escolar, na Escola de Santa Clara e na introdução de novos métodos de ensino, como o Legográfico-Luazes e o de João de Deus.

Como jornalista, destaca-se a sua colaboração, entre 1904 e 1907, no jornal portuense dedicado aos interesses da instrução e do professorado “O Campeão Escolar” e a fundação, direção e redação da “Revista Pedagógica”, que se apresentava como órgão do professorado oficial açoriano e que, entre 1909 e 1915, esteve ao serviço da educação e dos professores, tendo uma distribuição a nível nacional.

Lutadora contra a desigualdade, Maria Evelina de Sousa, foi militante de várias associações defensoras da causa feminista, como a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, a Associação de Propaganda Feminista e a Associação Feminina de Propaganda Democrática.

No que diz respeito à defesa dos animais, para além da sua intervenção na imprensa, onde condenou os maus tratos, foi, ao longo da sua vida, com Alice Moderna uma das principais dinamizadoras e dirigentes da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, fundada em 1911.

A 5 de junho, Dia da Região, Maria Evelina de Sousa será agraciada com a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico.


Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31236 de 24 de maio de 2017, p. 14)

Em defesa do sossego nas Sete Cidades

domingo, 21 de maio de 2017

Forcados incultos


Forcados incultos
A 18 de julho de 2007, um grupinho de meninos educados na ilha Terceira na arte de bem torturar animais decidiram criar uma associação que tem por objeto principal “a pega na garraiada da queima das fitas”. Quando não há animais para importunar a associação, também, pretende “a união e agregação de açorianos estudantes em Coimbra, pois não existe nenhuma outra "organização" em Coimbra que os represente ou que os possa agregar.”

A denominada “Associação Grupo de Forcados Açoreano Tremores de Terra” é, segundo os seus responsáveis, “o mais antigo grupo de forcados existente na região de Coimbra” que “tem contado com a colaboração do Grupo de Forcados da Escola Agrária de Coimbra”.

Este ano, como a tortura de animais já passou de moda, decidiram organizar um Encontro de Estudantes Açorianos que contou com a colaboração do Governo Regional, que comparticipou com cinco mil euros, e da Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, que atribuiu um apoio financeiro no valor de mil euros.

Do que conhecemos do programa do encontro não constou nenhuma prática de tortura animal, mas não deixa de ser estranho um encontro de estudantes que pretendeu discutir, entre outros assuntos “a Autonomia dos Açores, as potencialidades da Região para o regresso dos estudantes que se encontram no exterior” seja organizado por uma associação que tem por objetivo principal atormentar e maltratar bovinos.

J. Ormonde

quarta-feira, 17 de maio de 2017

SOCIALISMO E GAVETAS


SOCIALISMO E GAVETAS

Terá sido na sequência de uma decisão da Primeira Internacional (AIT) que foi constituído em Portugal o Partido Socialista que contou com o contributo de, entre outros, Azedo Gneco, operário gravador na Casa da Moeda e com um pensamento muito próximo das ideias de Karl Marx, José Fontana, de nacionalidade suíça, encadernador, depois caixeiro e sócio-gerente da Livraria Bertrand e um grande adepto do cooperativismo, Nobre França, tipógrafo que foi o primeiro secretário da Secção Portuguesa da AIT e redator do primeiro programa daquele partido e Antero de Quental, que dispensa qualquer apresentação.

A participação do partido socialista, quer durante a monarquia, quer na Primeira Rrepública, traduziu-se num fracasso já esperado, pois os potenciais votantes, os trabalhadores, não podiam votar por serem na sua esmagadora maioria analfabetos. Sobre as eleições, Antero de Quental, que foi convidado para ser candidato a deputado afirmou: “ Não pretendo ser deputado. Sei, porém, que não é também isso que o P.S. tem em vista, mas propriamente marcar e definir, com um voto, a sua posição no tereno político. A candidatura neste caso é mais um pretexto, uma ocasião”.

Na Primeira República, alguns ideais do Partido Socialista foram esquecidos, surgiram divergências várias entre os que socialistas favoráveis à participação de Portugal na Guerra Mundial e os que se opunham e a participação de socialistas nos governos levaram ao afastamento de muitos militantes. Para além do declínio da organização, os socialistas que chegaram a ter muita influência nos sindicatos e a controlar o movimento cooperativo perderam terreno para os sindicalistas revolucionários.

A atuação dos socialistas foi criticada, por Bento Gonçalves, que foi secretário-geral do Partido Comunista Português, fundado a 16 de março de 1921, nos seguintes termos:
“Fora o Partido Socialista um partido revolucionário e o proletariado português teria, em 1910, decidido as suas reivindicações dessa época e firmaria melhor as suas posições. Mas quem tinha a palavra era um partido oportunista, um partido que desviava a classe operária do seu justo caminho, colocando-a à mercê dos interesses da burguesia republicana”.

Já durante o Estado Novo, António Sérgio, que esteve refugiado em França, tentou uma aproximação ao que restava do Partido Socialista, tendo, segundo José Hipólito dos Santos, num jantar do 1º de Maio realizado em 1947, apresentado uma proposta de construção do socialismo baseado no cooperativismo, tal como preconizava José Fontana, quando escreveu: “Queremos a emancipação económica do proletariado pelas sociedades cooperativas de produção e de consumo, organizadas de modo que os produtos sejam dos produtores – o que vale o mesmo que dizer: acabe-se a exploração do homem pelo homem.” De acordo com José Hipólito dos Santos, as propostas de António Sérgio “foram recebidas com as maiores reservas- ele era considerado como um intelectual desligado das realidades nacionais, um homem que gostava de falar e de falar bem, mas o socialismo não se coaduna com utopias…”

Em 1973, aquando da sua fundação, o Partido Socialista, na sua Declaração de Princípios, declarava que tinha “por objetivo a edificação de uma sociedade sem classes, em que os trabalhadores serão produtores associados, o poder, expressão da vontade popular e a cultura, obra da capacidade de todos” e repudiava “o caminho daqueles movimentos que, dizendo-se social-democratas ou até socialistas acabam por conservar deliberadamente ou de facto as estruturas do capitalismo e servir os interesses do imperialismo”.

Hoje, não sei se haverá algum militante socialista que se reveja na Declaração de Princípios mencionada.

Na declaração que está em vigor, aprovada no congresso realizado em 2002, a linguagem está mais suavizada e os objetivos são tão vagos que poderiam ser subscritos por pessoas dos mais diversos quadrantes político-partidários, como se pode constatar pelo seguinte extrato, onde é preconizada: “ uma sociedade mais livre, mais justa, mais solidária, mais pacífica, através do aperfeiçoamento constante e do desenvolvimento harmonioso da democracia”

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31231, 17 de maio de 2017, p.18)



terça-feira, 16 de maio de 2017

Burros: vítimas e vingadores


Burros: vítimas e vingadores

Numa altura em que muito se fala na defesa das tradições, algumas anacrónicas e outras bárbaras, tinha pensado escrever sobre burros que foram durante séculos preciosos auxiliares dos humanos nas suas tarefas agrícolas e no transporte de bens, mas fui surpreendido por uma recente reportagem do Correio dos Açores que refere o verdadeiro “massacre” daqueles animais na ilha de São Miguel.

Primeiro, uma referência a uma “tradição” que despareceu e que consistia na lavagem de burros e cavalos na Pontinha, em São Roque. Sobre o assunto, no Correio dos Açores, do dia 26 de abril de 1972, podemos ler: “… parece-nos ser chegada a altura de ir acabando com certos costumes, algo pitorescos mas de duvidosa higiene”. O autor do texto apelou às autoridades competentes para a proibição de “tais práticas numa zona prioritária de arranque turístico a dois passos das mais frequentadas praias de São Miguel”.

A morte de 19 burros e o roubo de dois, criados por gosto, na Rocha das Feteiras, nos últimos cincos anos deve merecer de todas as pessoas o máximo repúdio e os energúmenos deverão ser rigorosamente castigados, sem apelo nem agravo.

A propósito da malvadez humana, termino este texto, dando a conhecer o caso de um burro que fez justiça pelas próprias mãos (neste caso boca).

Segundo o Correio dos Açores de 27 de agosto de 1924, em Angra do Heroísmo um rapaz foi mordido por um burro que era vítima de maus tratos.

Abaixo, deixo um extrato da notícia:

“… o Lourenço, assustado, aflito, vendo o perigo que corria, atirou-se do burro para fora, caindo estatelado no meio do chão.

O burro - que lhe tinha raiva por ele o tourear e lhe bater – estacou e avançou logo sobre o pobre Lourenço, que não teve tempo de fugir, e, pegando-lhe com a boca no braço direito, abanou frenética e violentamente todo o corpo do infeliz rapaz, moendo e despedaçando-lhe o músculo do braço e produzindo-lhe várias contusões, sobretudo na cara e cabeça que ficaram em maus estado.”

Infeliz rapaz, pobre do burro.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31230, 16 de maio de 2017, p. 16)

quarta-feira, 10 de maio de 2017

O sonho de Gonçalves Correia na Revista Pedagógica


O sonho de Gonçalves Correia na Revista Pedagógica

A professora Maria Evelina de Sousa fundou e dirigiu a “Revista Pedagógica”, que se apresentava como órgão do professorado oficial açoriano e que, entre 1909 e 1915, esteve ao serviço da educação e dos professores.

Quem tiver a oportunidade de ler a revista, facilmente toma conhecimento de que a mesma estava aberta a várias opiniões, algumas delas não coincidentes com as da diretora da revista, e a várias correntes do pensamento, como o anarquismo de que é exemplo a publicação de um texto do anarquista tolstoiano António Gonçalves Correia (1886-1967).

O anarquista, vegetariano, ensaísta, poeta e humanista Gonçalves Correia esteve de passagem na ilha de São Miguel, em 1910, tendo conversado com Francisco Soares Silva diretor do jornal “Vida Nova” e tudo leva a crer que terá feito o mesmo com Maria Evelina de Sousa. O resultado foi a publicação do texto “O presente e o futuro”, datado de 29 de dezembro de 1910, publicado no número 167, de 9 de fevereiro de 1911, da Revista Pedagógica.

Dado o interesse do mesmo para quem quer conhecer melhor o pensamento de Gonçalves Correia e para quem não se conforma em viver numa sociedade injusta, abaixo transcrevemos um longo extrato:

Sobre a situação que então se vivia podemos ler:

Vergados ao peso brutal e desumano do maldito fardo posto aos seus ombros enfraquecidos, jungidos à canga infamíssima que a ordem burguesa criou, ei-los que passam tristes, os pobres proletários desprotegidos, sofrendo os horrores indescritíveis que uma sociedade madrasta lhes criou.
….
Pobres que tendes de ver com fome os vossos filhos! Pobres que sentis partir o coração por não lhes poderdes satisfazer as mais imperiosas necessidades! Pobres que deixais morrer a companheira querida, tantas vezes a vossa maior alegria, a vossa maior consolação!

Quem sois vós!
Os degraus preciosos por onde sobem milhares de parasitas, a escada apetecida dos mais tirânicos burgueses!”

Sobre a sociedade futura, o autor de “Estreia de um Crente” e “A Felicidade de todos os Seres na Sociedade Futura” escreveu:

“Soberba de vegetação e verdura, riquíssima de águas cristalinas, e de avezinhas multicores, eis ante os meus olhos famintos do Belo a encantadora planície onde se erguem com orgulho majestosos chalets de formas várias, partes constituintes d’uma comuna fraternal e solidária, cujos habitantes, pondo de parte egoísmos do passado e vaidades que esqueceram, se amam, se compreendem, se solidarizam irmãmente, sabendo compreender a sua missão social até ao ponto de exigirem de cada um segundo as suas forças e de darem a cada um segundo as suas necessidades. As asas repelentes e agourentas da miséria não visitam aquele ponto ideal, enxotadas criteriosamente pelos seus habitantes que souberam atacá-las coletivamente, que compreenderam a tempo a beleza incomparável do comunismo livre.

Desgraças naquele paraíso?

É doença que por lá não medra porque a caudalosa corrente de solidariedade que ali se pratica não permite a sua propagação.

Tudo é livre e, ao mesmo tempo, tudo é criterioso. Todos amam e todos são felizes.

Ricos? Não há.

Pobres? Também não.

Pois? Solidariamente, coletivamente, fazem a riqueza da comuna, arrancando à terra, a mãe querida do homem, tudo que constitui os seus prazeres, os seus risos, as suas felicidades.

Vida de lágrimas e de crimes, trocada por uma vida de amor e de Justiça!”

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31225, 10 de maio de 2017, p.17)

segunda-feira, 8 de maio de 2017

A propósito de Burros na Ribeira Seca



A propósito de Burros na Ribeira Seca

De vez em quando, minha tia Zélia Soares que tem 87 anos pergunta se me recordo de meu avô, Manuel Soares, que morava na rua do Jogo, na Ribeira Seca de Vila Franca do Campo, ter uma burra.

A burra referida pernoitava no rés-do-chão da casa até que uma doença que atingiu vários membros da família levou a que, por conselho médico, meu avô a retirasse de lá.

À semelhança de meu avô outras pessoas na localidade, também, usaram burros para transporte de cargas, nomeadamente canados de leite, lenha para os fornos ou sacas de milho para os moinhos.

Se bem me lembro, lá na rua possuíam burros o senhor Ernesto que era dono meia dúzia de cabeças de gado e que para reforçar o seu orçamento familiar também se dedicava ao comércio de alguns produtos agrícolas, tendo ficado com a alcunha de “Ernesto das mónicas” por as (nêsperas) ter vendido e o senhor José Cabral que foi o último moleiro da Ribeira Seca, cuja moagem elétrica foi musealizada e encontra-se aberta ao público.

Para além das pessoas já mencionadas, também me recordo de terem possuído burros, na Ribeira Seca, três outros moleiros: José Estevão, Manuel Verdadeiro e Ângelo Verdadeiro.

O senhor José Estevão, que foi último moleiro que usou um moinho movido pela água da ribeira que atravessa a localidade, era um grande conhecedor da história de Portugal, tal como foi transmitida pelo Estado Novo.

Manuel Verdadeiro, irmão de minha avó Maria Verdadeiro, primeiro teve um moinho de água, localizado nos Moinhos, hoje em ruínas, e depois um movido a eletricidade, localizado na rua Nova, também possuía uma burra que depois foi herdada, tal como o moinho, pelo seu filho Ângelo que morou na rua da Cruz.

Este meu primo Ângelo era o que se pode chamar um doente pelo futebol, mais propriamente pelo Sport Lisboa e Benfica. Assim, sobretudo às segundas-feiras, sempre que o “glorioso” ganhava os jogos no dia anterior, quando ele ia buscar mais milho para moer, para além de muitos vivas ao Benfica que ia distribuindo pelas ruas, a burra apresentava-se bem aperaltada e com as unhas pintadas de vermelho.


Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31224, 9 de maio de 2017, p.17)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Veríssimo Borges e a política


Veríssimo Borges e a política

Hoje, lembrei-me de Veríssimo Borges, depois da leitura de um livro sobre a vida e a obra do anarquista terceirense Adriano Botelho e de ler um texto do engenheiro Jorge Macedo sobre a construção da desnecessária incineradora, se o desenvolvimento sustentável que se apregoa fosse para ser levado a sério e não um conceito ilusório pois, segundo Leonardo Boff, postula um desenvolvimento “que se move entre dois infinitos: o infinito dos recursos da Terra e o infinito do futuro. A Terra seria inesgotável em seus recursos. E o futuro para frente, ilimitado. Ora, os dois infinitos são ilusórios: os recursos são finitos e o futuro é limitado, por não ser universalizável” (Rui Kureda, 2009).

Antes de entrar no tema proposto, quero recordar que fui membro da Quercus, o sócio mais antigo nos Açores, mas por ser presidente dos Amigos dos Açores decidi nunca ter um papel ativo no núcleo de São Miguel daquela associação que surgiu na sequência da minha apresentação do Veríssimo a Viriato Soromenho Marques, durante um jantar no Casino das Furnas, aquando da presidência aberta de Mário Soares.

O Veríssimo Borges ainda hoje é conhecido pela sua militância em defesa da causa ambiental, tendo sido o dirigente mais conhecido do Núcleo de São Miguel da Quercus, durante muitos anos a maior associação ambientalista portuguesa até se “fragmentar”, dando origem a outras duas organizações, o FAPAS – Fundo para a Proteção dos Animais Selvagens, em 1990, e a ZERO- Associação Sistema Terrestre Sustentável, em finais de 2005.

Numa aula do Mestrado em Educação Ambiental que frequentei com o Veríssimo, perguntado sobre a sua opção política, a sua resposta foi: “sou anarquista autoritário”. Não vamos perder muito tempo com esta afirmação contraditória, como ele próprio reconheceu na altura, pois os anarquistas rejeitam qualquer forma de autoritarismo, mesmo que temporária, como defendem algumas correntes socialistas.

Noutra ocasião, sobre a vida política, Veríssimo Borges afirmou: “Tenho uma particular aversão pelos partidos do governo e alternativa. São extremamente parecidos e alternam o jogo da “cadeirinha”. E pela sua própria função e situação no todo social, põem os interesses partidários à frente dos interesses nacionais coletivos”.

Sobre o seu posicionamento politico, após o 25 de abril de 1974, depois de mencionar que se posicionou na extrema-esquerda e que sem ter mudado a sua forma de pensar, embora “perfeitamente apartidário” se revia no Bloco de Esquerda e concluiu: “Nunca me revi nas esquerdas do PC, nunca fui comunista e agora até os respeito porque eles também não o são”.

Em 2008, o Veríssimo foi o segundo candidato a deputado nas listas do Bloco de Esquerda por São Miguel tendo aquela força partidária suspendido a campanha devido ao seu falecimento. Num comunicado sobre o mesmo pode-se ler: "O Bloco inclina-se perante a memória de Veríssimo Borges, lutador emérito pela causa da preservação ambiental dos Açores e do bem-estar social das populações destas ilhas, que ele amava como ninguém".

Antes do 25 de abril de 1974, o Veríssimo Borges foi contra a ditadura, foi preso algumas vezes pela PIDE, tendo-se tornado político, segundo ele, a partir de 1969 à custa das prisões.

Uma das prisões do Veríssimo ocorreu no dia 1 de maio de1969, perto do Rossio, em Lisboa, após ter sido detido pela PIDE, por estar a distribuir folhetos sobre o 1º de Maio, Dia do Trabalhador.

Em 1969, Veríssimo Borges foi um dos estudantes universitários que participou em atos da pré-campanha eleitoral da lista de oposição democrática que era composta pelo Dr. António Borges Coutinho, pelo Dr. Manuel Barbosa e pelo Dr. João Silvestre.

Veríssimo Borges foi, também, um dos subscritores da Declaração de Ponta Delgada, documento que teve como redator principal Ernesto Melo Antunes e que “constituiu a plataforma eleitoral com vista às eleições de 1969”.


Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31220, 4 de maio de 2017, p.17)

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Alguns aspetos da Lei 8/2017


Alguns aspetos da Lei 8/2017

No passado dia 1 de maio entrou em vigor o novo Estatuto Jurídico dos Animais que resultou de projetos de lei apresentados na Assembleia da República pelo Partido Socialista, pelo PAN- Pessoas- Animais- Natureza, pelo Partido Social Democrata e pelo Bloco de Esquerda.

Saudada pela generalidade das associações de defesa dos animais, a Lei 8/2007, de 3 de março, estabelece um estatuto jurídico dos animais, reconhecendo a sua natureza de seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica.

Embora seja louvável os pequenos avanços, mesmo quando simbólicos e não extensivos a todos os animais, achamos que os principais beneficiados serão os animais de companhia, enquanto os restantes continuarão a ser discriminados e abrangidos por legislação que permite que continuem a ser torturados e mortos apenas para gozo de alguns que se dizem humanos, como acontece nas touradas e outros “espetáculos”, onde bovinos e cavalos são as principais vítimas.

Por falta de espaço, não iremos divulgar todas as alterações introduzidas pela lei referidas, pelo que apenas damos a conhecer algumas.

No que diz respeito à propriedade dos animais, o proprietário “deve assegurar o seu bem-estar e respeitar as características de cada espécie e observar, no exercício dos seus direitos, as disposições especiais relativas à criação, reprodução, detenção e proteção dos animais e à salvaguarda de espécies em risco, sempre que exigíveis”.

No âmbito do bem-estar animal o proprietário é obrigado a garantir “a água e alimentação de acordo com as necessidades da espécie em questão” e “acesso a cuidados médico-veterinários sempre que justificado, incluindo as medidas profiláticas, de identificação e de vacinação previstas na lei”.

O direito de propriedade de um animal, exclui “a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte”

Para além do mencionado, a agressão a um animal obriga à indemnização do seu proprietário ou de quem o tenha socorrido e quem roubar um animal poderá ser punido com pena de prisão ate três anos ou a multa.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31219 de 3 de maio de 2017, p.17)