sexta-feira, 28 de julho de 2023

MANUEL VICENTE: UM PADRE CULTO E HUMANISTA (5)


O padre Manuel Vicente e a escrita

Desde muito novo o padre Manuel Vicente colaborou em alguns jornais de São Miguel.

Quando foi ordenado presbítero, o jornal Diário dos Açores, de 19 de agosto de 1893, refere-se a ele como “o nosso prezado amigo e distinto colaborador”. Durante algum tempo o Padre Manuel Vicente dirigiu a Gazeta Micaelense.

Em 1910, o padre Manuel Vicente fez parte da Comissão da Imprensa Micaelense responsável pelas festas em honra do jornal “Açoriano Oriental”, no 75º aniversário da sua criação. Para além do padre Manuel Vicente, que representou a redação do jornal vila-franquense “O Autonómico”, a comissão era composta por Alfredo da Câmara, diretor do jornal “O Reporter”, Alice Moderno, diretora de “A Folha”, Aníbal Bicudo, colaborador do “Diário dos Açores” e do “Açoriano Oriental”, Francisco de Bettencourt e Câmara, do “Correio Michaelense”, Francisco Manuel Bicudo Corrêa, representante da “Persuasão”, Padre Herculano Romão Ferreira, da redação do “S. Miguel”, Jacinto Leite do Canto Pacheco, da “Gazeta da Relação”, Manuel Pereira Lacerda, Diretor do “Diário dos Açores”, Manuel Resende Carreiro, proprietário do “Diário dos Açores” e Maria Evelina de Sousa, diretora da “Revista Pedagógica”.

No âmbito daquelas festividades foi organizado um banquete para o qual foram convidadas todas as pessoas que colaboravam com a imprensa periódica. Durante o jantar, de acordo com reportagem pulicada no Diário dos Açores, no dia 26 de abril de 1910, o Padre Manuel Vicente afirmou o seguinte:

“Aquela festa [era] uma glorificação da velhice, que é uma coisa triste quando se trata dos homens, mas é um motivo de júbilo e de verdadeira alegria quando se trata da longevidade de um jornal, porque a imprensa nunca envelhece e pelo contrário vive da força adquirida pela experiência dos factos, retemperando-se na luta durante o decorrer dos anos”.

No que diz respeito a publicações fora da imprensa periódica apenas se conhece a publicação de um folheto de 12 páginas intitulado “Alocução Religiosa”, onde o Padre Manuel Vicente transcreveu o sermão proferido na Igreja da Esperança por ocasião das Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, em 1901.

Sobre a publicação, ou melhor sobre o sermão, o multifacetado escritor, político e jornalista micaelense Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro (1863-1911) no jornal “O Localista”, de 12 de setembro de 1901, escreveu o seguinte:

“…. Era preciso dar um cunho novo à oração, e o sr. Padre Manuel Vicente preferiu aforma de alocução, em que se pode sintetizar a brevidade da doutrina com a elegância do estilo.

Se o tempo lhe não houvera escasseado, queremos acreditar que o inteligente orador teria alargado as suas vistas para a piedosa história da Imagem, mostrando, embora de relance, a vitalidade dos Sentimentos que, através dos séculos, ela inspirou ao nosso Povo nos momentos de angustiosos lances.

Dar-se-ia assim a significação histórica da festa que para os forasteiros não passaria talvez duma trivial romaria popular, seguida dum arraial com procissão.

Mas não foi possível ao sr. Padre Manuel Vicente entrar no campo da Crónica, uma vez que só quase à última hora recebeu convite para pregar.

Portanto, no apertadíssimo prazo que lhe deram para a preparação do seu trabalho, só lhe restava o expediente de optar pelo género alocucitivo, dando de mão a qualquer aparato de Erudição histórica.

Mas nisso foi muito feliz o sr. Padre Manuel Vicente, porque a uma oração, bastante condensada, soube imprimir um cunho literário acentuado, que a faz e fará ler com prazer por todos que amam as formas da boa prosa portuguesa.”

A seguir transcreve-se, na íntegra, o seu texto publicado no jornal Correio dos Açores, de 28 de junho de 1921.

O Império da Infância Desvalida

Carta aberta para o “Correio dos Açores

Meu Caro Doutor José Bruno

Seria uma falta imperdoável se o “Correio dos Açores”, que tem sido, nestes últimos tempos, o porta-voz da sentimentalidade micaelense e o agitador de muitas e generosas ideias, se não associasse a este movimento grandioso de caridade, que, amanhã, se fará em volta da Orfandade e da Pobreza.

Há dias que te prometi estas linhas, sabendo o desejo que tinhas de que fosse eu quem dissesse aos leitores do teu jornal o significado caridoso e cristão desta festa, que é, certamente, uma das mais civilizadoras, porque envolve uma lição no sentido mais elevado da pedagogia moderna- ensinar as crianças a sentir e a socorrer as desgraças alheias.

É preciso que elas vejam nessa original coroação das meninas do Asilo alguma coisa mais do que um cortejo banal e efémero, atravessando as ruas numa exibição irritante de vaidade e de luxo.

Se me fosse possível transcrever aqui o que, na “Actualidade” disse o mavioso poeta e primoroso estilista Cortes-Rodrigues, acerca desta festa de caridade, teria feito o maior elogio dela e dado aos teus leitores o resumo e a síntese do seu fim altruísta e social.

No entanto, permite que eu transporte para o “Correio dos Açores” algumas palavras sentidas do brilhante autor dos “Azulejos”:

“A festa que se vai empreender é duplamente atraente; é uma festa de caridade e é uma festa regional; deram-se as mãos a bondade e a poesia. Mais uma vez ainda é o sentimento cristão que nos une ao passado, à beleza dessas tradições arredadas de há muito da memória dos micaelenses, mas tão cheias de colorido e de um sabor bem vincadamente local.

Numa época em que tanto se fala de regionalismo, estas festas, em que se começam a reviver os personagens históricos, revestem-se ainda de um novo significado social. É assim que se avigora a beleza dos nossos costumes, é assim que renasce o amor à terra pelo amor a tudo o que é bem nosso e que o vento mau da desnacionalização tanto teima em apagar. E nos tristes dias da indiferença que vão correndo bendito seja a caridade que se perfuma de poesia e se cobre de flores para encher de conforto o regaço de criancinhas que ignoram o carinho de família e a despreocupação da abundância.”

Eu tinha pensado, meu caro doutor, num grande cortejo histórico, em que revivessem os velhos costumes dos nossos avós, tão devotos do Espírito Santo e, sobre tudo, tão caritativos!

Fantasias, meu amigo, de quem se esquece muitas vezes de que vive num meio comodista e indolente!
.
Todavia, alguma coisa há de sair. Pelo menos uma grande coroação e uma grandessíssima colheita em dinheiro e em géneros, - o que já não +e para desprezar nos tempos que atravessamos.

Se o Império da Infância vingar e se perpetuar, então, em mais tempo e com mais estudo, os nossos eruditos e investigadores da história e da indumentária açorianas, meterão ombros a essa curiosa empresa que eu sonhei e se realizará, certamente, se quiserem trabalhar nela homens do valor do ilustre Diretor da “Revista Micaelense” e dos zelosos colaboradores do “Arquivo dos Açores”, que vem desentranhando, com amor, dos velhos documentos aquilo que constitui o orgulho e o vigor da nossa raça.

Como a festa está à porta, e, agora, só nos resta tempo para cuidar daquilo que mais interessa à felicidade e à vida daquele bando de infelizes crianças- a sua sustentação- dize, meu amigo, aos teus leitores: que a bondade do coração micaelense vai ser, mais uma vez, demonstrada nesta festa.

Para terminar, dir-te-ei em duas palavras o que me referiu uma senhora protetora do Asilo:

“Algumas daquelas crianças, que tinham de comparecer numa festa particular em seu benefício, não assistiram a ela por falta de calçado!...E outras tiveram de remendar os sapatinhos com linhas do seu cesto de costura …”

Nota, meu bom amigo, que isto acontece quando, por toda a parte, e nos pés de tanta gente, se ostenta o sapato de pelica doirada, com saltos tão altos…tão altos… que dariam um par de botas às infelizes crianças!

Se, amanhã, o Sol do estio nos faltasse, como é de prever, a iluminar as ruas desta cidade em festa, estou certo de que o Sol da Caridade aquecerá também, num beijo amorável, o mais lindo cortejo da nossa linda terra.

Teu amigo do coração

Padre Manuel Vicente

25 de julho de 2023

quinta-feira, 27 de julho de 2023

MANUEL VICENTE: UM PADRE CULTO E HUMANISTA (4)


Padre Manuel Vicente e o apoio aos mais necessitados

Sobre o carácter do padre Manuel Vicente, no Álbum Açoriano, de 1903, pode-se ler o seguinte:

“É o protótipo do sacerdote, moderno, sem olhos no chão, sem atitudes de falsos extasis, exercendo a sua missão sem fanatizar, mas instruindo, sendo mais um padre de ações de bem fazer do que de teorias místicas.

Entende que mais vale dar a um faminto uma migalha de pão, do que dizer-lhe que deve ser resignado como Cristo.”

As iniciativas do Padre Vicente não eram realizadas para benefício do próprio. Com efeito, entre outras ações, organizou com fins caritativos “A Coroação da Menina do Asilo” para apoio ao Asilo da Infância Desvalida e na Igreja de Santa Bárbara fundou a Conferência de São Vicente de Paulo.

Para além de uma homenagem ao santo como seu nome, a criação das Conferências de São Vicente de Paulo, na ilha de São Miguel, foi uma das vias que o padre Manuel Vicente encontrou para ajudar as pessoas mais necessitadas.

Para que tal facto não caísse no esquecimento, mandou colocar no patim da escada da sua casa de residência, em Ponta Delgada, um azulejo com a seguinte inscrição:


“Casa do Padre Manuel Vicente,
Fundador das confrarias de

Sam Vicente de Paulo

Na Ilha de Sam Miguel

1920”

Com os seus projetos, o Padre Vicente conseguia mobilizar a comunidade para ajudar os mais necessitados, tendo sido a Cozinha Económica, de que foi secretário, a instituição que mais beneficiou da sua dedicação.

De acordo com o Diário dos Açores, de 17 de fevereiro de 1938, na Cozinha Económica “os efeitos dos seus bons esforços são bem manifestos, angariando fartos donativos, que revertem a favor do sustento dos indigentes”.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

MANUEL VICENTE: UM PADRE CULTO E HUMANISTA (3)


O Padre Manuel Vicente e a paixão pelas flores

Não se conhecendo qualquer escrito da sua autoria, este texto tem por base o livro de Breno de Vasconcelos, intitulado “Paz cinzenta …os Açores através de algumas figuras e episódios de uma época”, publicado em Lisboa, em 1979, e alguns jornais da época.

O Diário dos Açores de 17 de fevereiro de 1938 quando faz uma retrospetiva da vida do Padre Manuel Vicente recorda “as exposições de lindos crisântemos no Palácio Fonte Bela, atualmente Liceu Antero de Quental, e que marcaram duma forma bem vincante, com seu aspeto ao mesmo tempo de Jogos Florais”. De acordo com a mesma fonte, “eram certames a que acorria tudo quanto a Ilha tinha de mais distinto no campo intelectual e no meio social, sendo acolhidos com palpitante interesse pelo público”.

A paixão do padre Manuel Vicente pelas flores não foi esquecida no poema da autoria do poeta micaelense Francisco Espínola de Mendonça (1891-1944) escrito por ocasião do funeral daquele sacerdote e publicado no Correio dos Açores, do dia 17 de fevereiro de 1938. Abaixo transcreve-se um extrato:

Amou a Arte, as flores, a Poesia,

Votando-lhes profunda idolatria,

Um acendrado amor.

Sacerdote bondoso, tolerante.

Na família um exemplo edificante:

-Amigo e Protetor

Amarilis, crisântemos, as flores

A que mais consagrou os seus amores,

Cobriam-lhe o caixão.

E, curvadas, pendendo enternecidas,

Pareciam dizer-lhe agradecidas,

A sua gratidão.

Depois de referir que embora vivesse modestamente, sem fortuna própria, e que o padre Manuel Vicente “foi figura da alta sociedade micaelense, não propriamente pelos seus pergaminhos genealógicos, mas muito mais pelo seu espírito e afabilidade no trato”, Breno de Vasconcelos, no livro já mencionado, relata o seguinte:

“Não posso precisar em que local organizou uma primorosa exposição de flores, com entradas pagas.

Muitas pessoas afluíram a visitar a exposição e a admirar não só as raras espécies, como a elegância com que as mesmas se encontravam dispostas.

O Bispo da diocese, nessa altura, estava de visita em São Miguel. Convidado a visitar esta exposição, o Bispo apreciou devidamente o bom gosto do padre Vicente e também as espécies florícolas. Ao despedir-se perguntou a que se destinava o produto daquela exposição. O expositor, muito diplomaticamente e com um sorriso reverenciado, respondeu que a receita revertia exclusivamente a favor da cozinha económica do padre Manuel Vicente …da sua própria e bem necessitada cozinha”.

Num texto publicado no Diário dos Açores, no dia 18 de junho de 1945, o Dr. Urbano de Mendonça Dias recorda a dedicação do padre Vivente às flores e a sua predileção especial pelos crisântemos. Sobre esta, escreveu:

“Chegou mesmo a expor muitos que eram admirados pela sua grandeza, pelo brilho da sua cor, pelo desfolhado da flor, e, apresentando-os, fazia-lhes o elogio, com entusiasmo.

Não era raro ver o Padre Manuel Vicente de crisântemo ao peito, pelas ruas da Cidade, ou com um desses bonitos exemplares num vasinho, a mostrar a este e àquele, pois ia colocar na montra dum estabelecimento, fazendo-lhe a história de quantos botões tivera a haste, dos adubos que empregara, da temperatura da estufa, e toda a gente dizia com verdade:

- Ninguém tem melhores crisântemos do que o Padre Manuel Vicente!

E até lhe chamavam, à francesa, o Padre Chrysanthème. Mas ele não se ofendia, com isso, sorria até daquele nome, envaidecido, e um dia ele disse:

- Pierre Loti- conhece? Escreveu uma novela, Madame Chrysanthème- conhece? - Não me consta que ela se tivesse irritado pelo nome lindo que lhe haviam posto.

E depois de uma pequena pausa, em que parecia que o seu espírito estivera a considerar qualquer passagem, voltou-se para o amigo e disse-lhe:

25 de julho de 2023

terça-feira, 25 de julho de 2023

Manuel Vicente: um padre culto e humanista (2)


O Padre Vicente e a nova vida do Jardim António Borges

Depois de um longo período de abandono, um grupo de empresários propôs-se, em 1922, resgatar o jardim António Borges, “do seu atual sequestro, como propriedade particular que é, restituindo-lhe as condições que faziam d’esse pedaço de torrão um dos mais invejáveis embelezamentos citadinos”.

De acordo com uma notícia publicada no Correio dos Açores, no dia 1 de abril de 1922, o grupo citado, constituído pelo Dr. José Jacinto de Andrade Albuquerque, proprietário do jardim, Pedro de Lima Araújo, Manuel José de Vasconcelos, Manuel Joaquim Raposo e José Cristiano de Sousa, decidiu por mãos à obra com vista à recuperação do Jardim António Borges, com vista à criação de “novas condições que ali chamem o grande público como local de recreio, com iluminações, música, pavilhões para refrescos, cinematógrafo, jogos, sports, etc.

O principal responsável pela “ressurreição” do jardim foi o padre Manuel Vicente que teve o cuidado de “salvar algumas espécies florestais de valor, desconhecidas no meio da ramaria selvagem e inextrincável” e de “reconstruir o traçado primitivo do jardim, fazendo desaparecer “modificações de bárbaros e improvisados jardineiros”.

Através da leitura do Diário dos Açores, de 9 de junho de 1922, que relata uma visita ao jardim a poucos dias da sua inauguração, facilmente se conclui o pepel de destaque do sacerdote referido na recuperação do jardim. Assim, a dado passo pode-se ler que para além dos membros da sociedade esteve presente “o técnico-amador dirigente dos trabalhos sr. Padre Manuel Vicente”. No fim do texto referido também é feito um agradecimento ao sr. Albano da Ponte, da Casa Bensaúde, que cedeu pessoal daquela entidade para a realização de alguns trabalhos a pedido do padre Manuel Vicente.

Pela leitura do Correio dos Açores, de 10 de junho de 1922, chega-se à mesma conclusão. Com efeito, a dado passo do texto publicado no referido dia, pode-se ler o seguinte: “Como chegámos à tabela, segundo nosso hábito, e os restantes convidados estivessem em tardança, guiados pelo Padre Manuel Vicente, que de galochas de borracha, por causa da humidade, sobretudo cautelosamente abotoado, olhar inspirado de criador, abrindo os braços, dava ordem a uma pequena tribo de trabalhadores…” e mais adiante : “Padre Manuel Vicente dispôs em volta dessa homenagem ao fundador do maravilhoso jardim uma decoração artística e sóbria, de flores e plantas e nessa nesga em que as árvores dum lado e outro da avenida se cruzam em fraternal abraço, o busto de António Borges…”

Por último, no texto do Correio dos Açores citado, há uma referência a outros intervenientes na recuperação do jardim nos seguintes termos: “O resultado desse trabalho, em que colaboraram o mestre Manuel de Oliveira Panela e seus irmãos, que às Furnas foram buscar, foi excelente e o jardim está realmente belo e fica sendo um adorável recinto da nossa cidade”.

No dia de abertura ao público do jardim também houve o descerramento do busto do seu fundador, António Borges.

Depois de descerrado o busto pela senhora D. Isabel Pereira Athaíde do Canto Bettencourt, parente de António Borges, o padre Manuel Vicente discursou, exaltando a memória do fundador do jardim e dos cidadãos ilustres da sua geração, nomeadamente José Jácome Correia, José do Canto e Ernesto do Canto, tendo frisado “todo o seu amor pelas plantas e pelas flores”.

A cerimónia contou com a presença de Alice Moderno que recitou o soneto, dedicado ao Padre Vicente, que a seguir se transcreve:

Ao desvendar de um busto

Ao padre Manuel Vicente

Para aqueles que em vida porfiaram

- Fosse qual fosse o campo, a arena ou a liça-

No sonho da beleza que sonharam

- Acorda sempre o dia da justiça.

É lenta a gestação. A Consciência,

Fecundada ao calor de muitos sois,

Já tarde reconhece o preço à Sciência

E glorifica a cinza dos Heróis.

Quantas vezes alegres, passeamos

À sombra hospitaleira destes ramos

E a memória do Autor ainda esquecida …

Soou enfim a inevitável hora

E não será lembrada só, agora,

Dos pássaros na orquestra enternecida.

O Padre Manuel Vicente foi também um dinamizador da vida do Jardim António Borges após a sua abertura ao público, em 1992. Abaixo, apresentamos duas das suas iniciativas.

Na noite de São João de 1922, realizou-se um festival no Jardim António Borges, onde, a convite do Padre Manuel Vicente, cantaram Miss Helen Bartlett e Mr. Edgar Accetta. O jornal Diário dos Açores de 26 de junho, deu os parabéns àquele sacerdote “pelo êxito completo de mais esta festa tão distintamente organizada”.

O Padre Manuel Vicente também organizou no mês de julho de 1922, no Jardim António Borges, uma “Festa Infantil” que constou de um grande baile de crianças. De acordo com o Correio dos Açores, de 25 de julho, “as crianças dançaram animadamente ao som marcial da banda “União” e até “as pessoas sisudas começavam a esboçar atitudes de querer participar das danças”.

25 de julho de 2023

Manuel Vicente: um padre culto e humanista (1)


Alguns dados biográficos

O padre Manuel Vicente, nasceu na Rua João do Rego, 134, em Ponta Delgada, no dia 11 de janeiro de 1866 e faleceu no dia 15 de fevereiro de 1938, na cidade de Artesia, na Califórnia, nos Estados Unidos da América.

A sua missa nova realizou-se na Igreja de São José em Ponta Delgada, em agosto de 1893, com a presença de uma numerosa assistência de todas as classes sociais. O padre Manuel Vicente teve como padrinhos o Dr. Caetano de Andrade Albuquerque e o Dr. José Maria Tavares Ferreira.

O Diário dos Açores, de 30 de agosto de 1893, publicou uma reportagem sobre aquela missa de que abaixo se transcreve alguns extratos:

“…O templo achava-se apinhado de pessoas de todas as classes, que ali tinham concorrido espontaneamente levadas pelo sentimento de simpatia que o nóvel sacerdote tem sabido inspirar no público onde goza de geral estima.

Terminado o ato religioso, foi servido um delicado lunch em casa dos pais do celebrante, levantando-se ao jantar vários brindes, sendo o primeiro do padre Manuel Vicente ao sr. D. Francisco José, bispo da diocese, fazendo o elogio do seu belo coração e esclarecida inteligência, em rápidas, mas levantadas e sentidas palavras.

Brindou em seguida ao ilustre titular e nobilíssimo cavalheiro, sr. conde de Fonte Bela, a quem era devedor, bem como sua família, da mais generosa proteção.

Ao sr. visconde de Porto Formoso, bom amigo, e herdeiro de um título e de um nome imaculado.

Aos srs. Marquês da Praia e conde de Jácome Corrêa, dois cavalheiros que lhe mereciam gratidão.

Muitos outros brindes se trocaram entre os convivas, que exprimiam a cordialidade expansiva que presidia àquela festa íntima.

Foram lembrados os nomes dos srs. Dr. Henrique Ferreira de Paula Medeiros, Francisco Maria Supico, Manuel Pereira de Lacerda, padre Francisco Horta, cónego Reis Fisher, cónego Machado, padre João Pereira Dâmaso, família Carreiro de Mendonça, João Bernardes d’Abreu e Lima, família do padre Manuel Vicente, padre Januário Velosa, Clemente Pereira da Costa, padre Francisco José Carreiro, padre José Augusto da Silva, os alferes Andrade, Reis e Miranda, Francisco Manuel Bicudo Corrêa, etc.

Terminou, levantando um entusiástico brinde ao novo sacerdote, o sr. dr. Guilherme Poças Falcão, que na sua palavra fluente e convicta falou das belas qualidades que ornam o coração do padre Manuel Vicente, dirigiu congratulações aos seus pais, e agradeceu os numerosos brindes que lhe forma dirigidos por todos os convivas.

Entre as ofertas feitas naquele dia ao padre Vicente, lembramo-nos de ter visto uma cadeia de oiro para relógio, uma salva de prata, um par de jarras do Japão e uma caneta de prata doirada.”

Distinto orador sacro, o padre Manuel Vicente foi cura do Cabouco, de novembro de 1895 a outubro de 1898.

Também paroquiou na ilha de Santa Maria, na Relva, em São Pedro, na Matriz de Ponta Delgada, foi capelão no Recolhimento de Santa Bárbara e nos Estados Unidos da América.

Em 1897, o Padre Manuel Vicente fez parte de uma comissão que preparou a visita do Padre Sena Freitas à sua terra natal, depois de uma ausência de 40 anos. Para além do Padre Vicente, entre outros faziam parte o farmacêutico e jornalista Francisco Maria Supico, que presidia, e Eugénio Pacheco que chegou a ser reitor do Liceu de Ponta Delgada.

Mais tarde, foi viver para os Estados Unidos, onde fundou a igreja Paroquial da Sagrada Família, em Artesia, pertencente à Arquidiocese de Los Angeles.

Como prova do seu empenho na construção da igreja, na mesma encontra-se uma placa com os seguintes dizeres: “Esta placa comemora a fundação da Igreja da Sagrada Família pelo Padre Manuel Vicente, português, e seus concidadãos e paroquianos, em 25 de dezembro de 1930”.

Quando faleceu, os seus paroquianos mandaram embalsamar o corpo numa urna com tampa de vidro que veio para Ponta Delgada, onde chegou no dia 15 de abril de 1938. Depois de estar exposto na Igreja Matriz, a urna foi colocada no jazigo da família no Cemitério de São Joaquim.
T. Braga

Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada


Exmo. Senhor

Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada

25 de julho de 2023

Numa visita ao Jardim António Borges, realizada no dia 21 de julho de 2023, alguns membros do Núcleo Regional dos Açores constataram algumas anomalias naquele espaço verde, de Ponta Delgada, que deverão ser corrigidas o mais cedo possível:

1- Uma placa identificativa não colocada junto à respetiva planta. Assim, a placa do bambu (Bambusa vulgaris) está colocada junto ao ofiopogão (Ophiopogon jaburan);

2- Estão danificadas as placas das seguintes espécies: carocha (Magnolia figo), aspidistra (Aspidistra elatior), bambu (Bambusa vulgaris), árvore-da-borracha-australiana (Ficus macrophylla), doriantes (Doryanthes excelsa), jambeiro (Syzygium jambos) e pata-de-elefante (Beaucarnea recurvata);

3- Os ramos da trepadeira cipó-de-água (Amphilophium paniculatum) que estavam sobre um mirtilo-magenta (Syzygium paniculatum) depois de cortados não foram removidos, o que dá um mau aspeto ao local.

Por último, o Núcleo Regional dos Açores da IRIS- Associação Nacional de Ambiente lamenta que o edifício da cisterna-mirante continue fechado ao público e não esteja a ser usado como equipamento de interpretação/ educação ambiental.

Núcleo Regional dos Açores da IRIS- Associação Nacional de Ambiente)

domingo, 23 de julho de 2023

Jardim António Borges: honra à memória dos amigos das plantas


Jardim António Borges: honra à memória dos amigos das plantas

Quem visita o Jardim António Borges, sai da ilha de São Miguel e viaja pelo mundo, pois nele encontra plantas dos vários continentes, com exceção da Antártida.

De acordo com o último levantamento florístico, da autoria de Raimundo Quintal, realizado no ano 2020, nos seus 3 hectares de área, é possível contatar com plantas pertencentes a 239 táxones. De entre as espécies que podem ser observadas, destacamos as endémicas dos Açores, como o azevinho (Ilex azorica), o pau-branco (Picconia azorica), o loureiro (Laurus azorica) e o folhado (Viburnum treleasei). Do continente americano, chamamos a atenção para a monumental árvore-orelha-de-elefante (Enterolobium cyclocarpum); de África, destaca-se o podocarpo (Afrocarpus falcatus); da Ásia, vale a pena observar a canforeira (Cinnamomum camphora); da Europa, distingue-se o choupo-branco (Populus alba) e, por último, da Oceânia, salienta-se a fotogénica árvore-da-borracha-australiana (Ficus macrophylla).

Neste texto, pretende-se homenagear o criador do jardim, António Borges da Câmara Medeiros (1812-1879), o padre Manuel Vicente (1866-1938) e Alice Moderno (1867-1946).

António Borges da Câmara Medeiros, apaixonado pelas plantas, para além de criador do jardim que hoje ostenta o seu nome, também criou o Jardim Pitoresco, nas Sete Cidades, foi um dos responsáveis pelo surgimento do Parque das Murtas, atualmente conhecido por Parque Dona Beatriz do Canto, nas Furnas, e, enquanto viveu em Coimbra, entre 1861 e 1868, colaborou com o Jardim Botânico de Coimbra, tendo oferecido várias árvores de fruto que adquiriu para o efeito, e terá projetado a Avenida das Tílias.

A paixão de António Borges pelas plantas era tal que José do Canto, numa das cartas de Paris dirigidas ao primo José Jácome Correa, depois de o considerar “excessivo em todas as cousas a que se aplica, e como é facilmente absorvido por ellas”, escreveu que naquela cidade aquele se entregou “única e exclusivamente às plantas; o dia todo é nos viveiros ou no Jardim das Plantas, e as noutes, com pequenas excepções, são empregadas em folhear catálogos e tomar notas”.

Outra característica de António Borges que foi destacada por José Bensaude é a de que não era um homem de ficar pelo trabalho de gabinete. Com efeito, para além de ser o responsável pelo desenho dos seus jardins, independentemente do estado do tempo, soalheiro ou chuvoso, era ele quem orientava os trabalhos de jardinagem.

Ao longo dos tempos, o Jardim António Borges teve períodos em que esteve menos cuidado. Um deles ocorreu após o falecimento de António Borges, até que, em 1922, um grupo de empresários decidiu proceder à sua recuperação.

Os trabalhos de jardinagem foram realizados sob a direção do Padre Manuel Vicente que, no dia da “inauguração”, foi visto a dar ordens aos trabalhadores calçando galochas de borracha por causa da humidade.

Como principal responsável pela “ressurreição” do jardim, o padre Manuel Vicente teve o cuidado de “salvar algumas espécies florestais de valor, desconhecidas no meio da ramaria selvagem e inextrincável” e de “reconstruir o traçado primitivo do jardim, fazendo desaparecer “modificações de bárbaros e improvisados jardineiros”.

O Padre Manuel Vicente foi também um dinamizador da vida do Jardim António Borges após a sua abertura ao público, em 1922. Com efeito, entre outras iniciativas, menciona-se a realização de um festival na noite de São João daquele ano, onde cantaram Miss Helen Bartlett e Mr. Edgar Accetta, e de uma “Festa Infantil”, no mês de julho, que constou de um grande baile de crianças, onde estas “dançaram animadamente ao som marcial da banda «União»”.

O Padre Manuel Vicente era conhecido por “Padre Chrysanthème por, de entre as flores que cultivava, dar destaque especial aos crisântemos, que chegava a expor nas montras de um estabelecimento comercial de Ponta Delgada para que todos os pudessem apreciar. Foram também da sua iniciativa exposições de flores no Palácio da Fonte Bela que eram muito bem acolhidas pelo público.

Quando faleceu, a sua paixão pelas flores não foi esquecida pelo poeta Espínola de Mendonça, que escreveu o seguinte:

“Amou a Arte, as flores, a Poesia,

votando-lhes profunda idolatria,

um acendrado amor.

Sacerdote bondoso, tolerante.

Na Família um exemplo edificante:

- Amigo e Protector



Amarílis, crisântemos, as flores

a que mais consagrou os seus amores,

cobriam-lhe o caixão.

E, curvadas, pendendo enternecidas,

pareciam dizer-lhe agradecidas,

A sua gratidão.”

A feminista e amiga dos animais, Alice Moderno, também esteve associada ao Jardim António Borges, em 1922, tendo na cerimónia de reabertura do mesmo recitado um soneto da sua autoria, dedicado ao Padre Manuel Vicente:

“Ao desvendar de um busto

Para aqueles que em vida porfiaram

- Fosse qual fosse campo, a arena ou liça-

No sonho de beleza que sonharam

- Acorda sempre o dia da justiça.

É lenta a gestação. A Consciência,

Fecundada ao calor de muitos sois,

Já tarde reconhece o preço á Sciencia

E glorifica as cinzas dos Herois.

Quantas vezes, alegres, passeamos

Á sombra hospitaleira destes ramos

E a memória do Autor ainda esquecida …

Soou enfim a inevitável hora

E não será lembrada só, agora,

Dos passaros na orquestra enternecida.”

Menos conhecida do público é a preocupação de Alice Moderno com a conservação da Natureza e, em particular, a sua paixão pelas plantas. Com efeito, sobre as árvores, em vários números do seu jornal “A Folha”, escreveu o seguinte:

“Plantar árvores é não só amar a natureza. Mas ainda ser previdente quanto ao futuro, e generoso para com as gerações vindouras. Cortá-las ou arrancá-las a esmo, sem um motivo justo, é praticar um acto de selvajaria.” (12/2/1913)

“A árvore é confidente discreta dos namorados e a desvelada protetora dos pássaros – esses poetas do ar. A árvore é a maior riqueza da gleba, o maior tesouro dos campos e o maior encanto da paisagem!” (15/3/1914)

Em 1940, a propósito de uma campanha movida contra os metrosíderos do Campo de São Francisco, Alice Moderno, num texto publicado no Correio dos Açores, abriu o seu coração, tendo afirmado o seguinte:

“Tenho pelas árvores, em geral, uma paixão, e tanto que nos escassos palmos de terra que possuo, nunca, apesar de atravessar uma época em que os ananaseiros desasados, em cujo número me incluo, necessitarem de recorrer a todas as economias e aproveitamentos, nunca, repito, mando abater e reduzir a achas uma árvore que não tenha tido morte natural.”

Teófilo Braga

domingo, 2 de julho de 2023