terça-feira, 25 de outubro de 2016

A propósito da leitura de duas conferências da pedagoga Maria Borges Medeiros



A propósito da leitura de duas conferências da pedagoga Maria Borges Medeiros

Nas minhas pesquisas sobre o Movimento da Escola Moderna tomei conhecimento de que uma das dinamizadoras das técnicas de Freinet, em Portugal, foi Maria Amália Borges de Medeiros Gutierrez (Maria Borges Medeiros).

Maria Borges Medeiros, entre outras formações, licenciou-se em Letras, pela Universidade de Lisboa e obteve o certificado de ensino especial de deficientes no Instituto Aurélio da Costa Ferreira. Lecionou na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Montreal, no Canadá, foi professora do ensino secundário e fundou, com João dos Santos e Henrique Moutinho, o Centro Infantil Helen Keller, tendo sido a primeira diretora do mesmo, durante aproximadamente oito anos.

Insatisfeita com várias experiências de ensino com crianças, adolescentes e adultos e inquieta pelo facto dos resultados serem “como uma espécie de condicionamento e não armavam a criança ou o jovem para a conquista da sua própria vida com as suas próprias mãos”, não desistiu e terá encontrado “um pouco de luz” ao descobrir Célestin Freinet quando trabalhava na classe de amblíopes da Liga Portuguesa de Profilaxia da Cegueira.

Depois de descobrir Freinet, entre as ideias que passaram a ter significado para Maria Borges Medeiros, destaco as seguintes:

“… A criança gosta de trabalhar e trabalha com afinco quando o trabalho resolve um problema que é seu. O centro do interesse é a vida da criança que penetra na escola, não é uma construção arbitrária do professor. A cooperativa escolar é dirigida pelos alunos e o sentido das responsabilidades assim estimulado dignifica e motiva a criança”.

Em duas conferências proferidas em Lisboa, em 1968, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, publicadas em 1970, pelo Centro de Investigação Pedagógica daquela fundação, com o título “O Papel e a formação dos Professores”, Maria Borges Medeiros apresentou um pouco do seu pensamento que achei por bem partilhar com os leitores do Correio dos Açores, especialmente os interessados nas questões relacionadas com o ensino e a educação.

Um dos ensinamentos que se pode tirar das conferências mencionadas é o de que mais importante do que as técnicas usadas é “viver e compreender pela ação o espírito da escola ativa”, já que o docente pode muito bem conhecer e aplicar uma técnica Freinet ou outra qualquer e continuar a utilizá-la “num contexto tradicional baseado na passividade do aluno”.

Uma questão que me preocupa é a de que para tornar mais atrativo o ensino, alguns docentes recorrem ao meio onde se inserem as suas escolas e transportam para esta exemplos do dia-a-dia, por vezes tradições, que como tal têm aspetos positivos e outros condenáveis à luz dos conhecimentos de hoje e da evolução civilizacional.

Maria Borges de Medeiros, referindo-se ao Canadá, dizia que lá se discutia a noção de adaptação. Segundo ela, a “educação deve adaptar; mas adaptar em que sentido? Adaptar, transformando o indivíduo num ser passivo que se submete? Ou adaptar no sentido de criar, formar um ser maleável, capaz de evoluir e de se integrar num mundo que se transforma?”

Outra questão que se põe é a do professor abdicar da sua função e aceitar alguns caprichos dos alunos para os agradar. Sobre o conceito de aceitação, Maria Borges Medeiros escreve que “muitos confundem aceitação com resignação”. Segundo ela, “aceitação é um conceito dinâmico que descreve uma atitude de abertura de espírito, de esforço no sentido de considerar empaticamente o ponto de vista do outro” e acrescenta: “trata-se de permitir que o outro explore, num clima livre de juízos de valor e de ameaças, o significado que para ele tem a nova experiência ou o novo conhecimento; aceitar é educar, isto é, permitir que o outro evolua, se modifique e cresça”.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31065, 26 de outubro de 2016, p.16)

FERNÃO BOTTO MACHADO E A ABOLIÇÃO DAS TOURADAS



FERNÃO BOTTO MACHADO E A ABOLIÇÃO DAS TOURADAS

Fernão Botto Machado foi um solicitador e jornalista que, embora autodidata, possuía uma vasta cultura, tendo nascido, em Gouveia, em 1865 e falecido, em 1924, em Lisboa.
Foi um ativo militante político na área socialista e republicana e participou nas ações que conduziram à implantação da República.
Depois da implantação da República foi eleito deputado à Assembleia Constituinte de 1911, tendo-se destacado como orador e autor de diversas propostas legislativas, com destaque para uma proposta de Constituição da República.
A proposta de Constituição da República de Botto Machado apresenta no Título VII intitulado “Altruísmo e solidariedade social” um conjunto de medidas conducentes à proteção dos mais fracos, nomeadamente das classes trabalhadoras, e inclui o artigo 127º com o seguinte teor: A República Portuguesa empenhará todos os seus esforços para extinguir as touradas.
No seu discurso proferido na Assembleia Constituinte, mais tarde editado em livro, Botto Machado referiu-se às touradas nos seguintes termos: “Esse cruel e perigoso sport só é defendido nos nossos dias, ou por interesses de exploração ou por aficionados del redondel, mas sem fundamentos que o justifiquem e sem sequer razões que o desculpem.”
Em relação ao (pretenso) carácter benemérito de algumas touradas, Botto Machado denunciou-o veementemente nos seguintes termos:
“A sua caridade, fria, egoísta, incerta e desigual, visto que era só para os seus adeptos; belo luxo, porque lhes dava ensejo para ostentações caras; hipócrita, porque visava criar anjos de caridade com asas de pau e coração de pedra... a sua caridade, em regra, procurava receitas imundas, ou à custa da tortura e da agonia de animais nobres e bons como os bois, e lindos, amorosos e elegantes como os pombos, ou à custa do suor do povo que caía nas armadilhas, e do sangue e da vida de picadores que morriam nas arenas, como no caso trágico do cavaleiro Fernando de Oliveira.”
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31064, 25 de outubro de 2016, p.7)

domingo, 23 de outubro de 2016

ONGA: VOLUNTARIADO E LIDERANÇA




ONGA: VOLUNTARIADO E LIDERANÇA


Síntese - Um dos temas que tem sido aflorado, nas aulas de Educação Ambiental em Contextos Diferenciados, é o da liderança. Dada a importância desta temática, quer quando se fala em educação ambiental, quer no funcionamento das Organizações Não-Governamentais de Ambiente, optei por apresentar um breve texto de reflexão, que tem por base a minha participação como voluntário em diversas associações privadas sem fins lucrativos e uma revisão bibliográfica.

Nas ONGAS- Organizações Não Governamentais de Ambiente, associações sem fins lucrativos, que, quanto a mim, deverão manter a sua independência dos poderes económico e político, os seus membros devem ser este garante e suporte, quer através da disponibilização do seu trabalho, em regime de voluntariado, necessário para o seu funcionamento democrático e implementação das suas actividades, quer para a participação pública e representação institucional da mesma (Nave e Fonseca, 2000).

A aprovação da Lei das Associações de Defesa do Ambiente (1987) e da Lei das ONGA (1998), fez com que as associações passassem a ser consideradas parceiros sociais, sendo ouvidas na definição das políticas públicas do ambiente (Nave e Fonseca, 2000). A institucionalização das associações, por via da legislação referida, abriu as portas. a algumas delas, para uma maior participação e visibilidade pública, levando em alguns casos ao seu crescimento e profissionalização. Por outro lado, a ausência de tradição de intervenção dos cidadãos na resolução dos problemas com se debate quotidianamente a sociedade portuguesa, em geral e a açoriana, em particular, aliada ao peso tutelar do Estado, levou a que a institucionalização das associações criasse “mecanismos de agrilhoamento”, para além de ter feito com que algumas delas passassem a viver na dependência de subsídios estatais (Nave e Fonseca, 2000 e Eloy, 1994).

A dependência das associações de apoios do Estado, levou a que a nível nacional houvesse uma cisão na Quercus, levando a que o grupo fundador daquela associação criasse o Fapas (Fundo de Apoio à Protecção de Animais Selvagens) (Eloy, 1994). A nível regional, a dependência levou, a alguma instrumentalização das principais associações por parte da Secretaria Regional do Ambiente, veja-se o caso dos Amigos dos Açores e dos Montanheiros que ao celebrar protocolos com aquele departamento governamental para a gestão de ecotecas foram “obrigadas” a ter ao “seu serviço” diversos profissionais para a implementação de um plano de actividades e de um orçamento que lhes é imposto e, muito recentemente, ao fecho da sede da Quercus de São Miguel.

Outras questões que estarão associadas à dependência estatal, será a falta de reflexão no seio das associações, acerca do papel do associativismo na sociedade de hoje, sobre o que se pretende com a educação ambiental, etc., e o não investimento “num dos seus maiores bens intangíveis – os voluntários” (Gomes, 2007, p. 35).

Com o trabalho voluntário, ganham os voluntários, em termos de desenvolvimento pessoal, maior estabilidade emocional e aumento das suas amizades ao contactar com outras pessoas e beneficiam as associações que podem fortalecer “os programas e serviços existentes da mesma forma que permite que novos talentos, habilidades e conhecimentos sejam adquiridos” (Gomes, 2007, p. 37).

Segundo Ducker (2006), citado por Gomes (2007): “uma das grandes forças de uma organização sem fins lucrativos é que as pessoas não trabalhem nela para viver, mas por uma causa, logo isso cria na instituição, através da sua liderança, a responsabilidade de manter viva essa chama e não permitir que o trabalho se torne um emprego”(p. 40).

Mas, o que se entende por liderança?

São várias as definições existentes. Para Davis (1967), citado por Bertrand e Guillemet (1994) liderança é “a habilidade para persuadir os outros a prosseguir com entusiasmo os objectivos estabelecidos. É o factor humano que reúne um grupo e o motiva para as intenções […] É, enfim o que permite transformar em sucesso o potencial de uma organização e dos recursos humanos” (p.173). Opinião semelhante é a defendida por Motta (1988), citado por Ceroni (2005) que a define como “o processo no qual um indivíduo influencia outros a se comprometerem com a busca de objectivos comuns” (p.55).

Embora, numa organização, todos tenham capacidade de influenciar os outros há sempre quem exerça mais influência do que receba, são estas pessoas que são designadas de líderes (Bertrand e Guillemet (1994). Estes, de acordo com Ceroni (2005), deverão ter “capacidade de saber ouvir, alinhavar ideias, questionar, inferir, traduzir posições e sintetizar uma política de acção com o propósito de coordenar eticamente o processo efectivo de responsabilidade social” (p.55). Para além destas características, Bertrand e Guillemet (1994) referem ainda outras duas que considero muito importantes: a capacidade para delegar tarefas e “a aptidão para se fazer respeitar e estimar na organização e fora dela” (p. 176).

Outra questão importante, que merece ser abordada neste trabalho, relaciona-se com os diversos estilos de liderança.

Embora não existam estilos puros, isto é uma mesma pessoa pode ter mais do que um estilo de liderança, pode utilizar um estilo ou outro consoante a equipa de trabalho ou pode variar de estilo em face das circunstâncias (motivação da equipa, por exemplo) nem haja nenhum estilo que seja o mais adequado para todas as situações, o estilo de liderança depende das características pessoais dos lideres. (UOI-FEUP, s/d).

Muitas são as tipologias de estilos de liderança, neste trabalho apresenta-se, sucintamente, a atribuída a White e Lilliput que consideram existir três estilos de liderança: autoritária, liberal (“deixa-andar”) ou democrática (UOI-FEUP, s/d e Bertrand e Guillemet, 1994).

Enquanto o líder autoritário ao definir todas as políticas, ao fixar as tarefas a efectuar por cada um e ao impor as equipas de trabalho, não deixa espaço para a criatividade, o líder liberal ao não impor quaisquer regras, dando total liberdade ao grupo, fomenta a confusão e a desorganização. Por último, o líder democrático ao partilhar com o grupo a participação nas decisões, promove o bom relacionamento e a amizade (UOI-FEUP, s/d e Bertrand e Guillemet , 1994).

Sabendo-se que uma das características da ONGAS dos Açores é manterem por décadas os seus órgãos de gestão, nomeadamente as presidências das direcções, veja-se o caso dos Montanheiros e dos Amigos dos Açores, seria de todo o interesse estudar a razão pela qual não há renovação, que estilos de liderança estão em causa, em que medida os mesmos são obstáculo a uma maior participação dos associados e se são ou não impeditivos do fomento do voluntariado.

Outra questão que gostaria de ver debatida é a levantada por Viegas (2004): “como é que as associações podem ter tantos efeitos cívicos e democráticos, quando apenas uma minoria se envolve nas associações, sendo ainda menor o número de indivíduos que participa de um modo activo?” (p.46)

Por último, deixo outra questão: sabendo-se que os contributos das associações para a deliberação democrática são fracos (Viegas, 2004), será que as alterações deverão passar, em primeiro lugar, pela renovação dos seus órgãos dirigentes?



Pico da Pedra, 19 de Janeiro de 2007










BIBLIOGRAFIA


BERTRAND, Y., GUILLEMET, P., (1994). Organizações: Uma Abordagem Sistémica. Lisboa: Instituto Piaget.


CERONI, M., (2005), A Conduta Ética do Líder nas Organizações, Revista Eletrônica de Ética e Cidadania, v. 1, n. 1, p. 51-65, Data de consulta: http://www.mackenzie.com.br/universidade/teologia.


ELOY, A. (1994). O ambiente e o ordenamento do território, in Reis; A: (Eds.) Portugal, Vinte Anos de Democracia. Lisboa: Círculo de Leitores.

GOMES, P. (2007). O trabalho voluntário nas organizações não governamentais e a importância do líder educador, Scientia Una, nº 8, p.33-44. Data de consulta: 17de Janeiro de 2008, de http://www.praticanet.com/clientes/focca/revista_cientifica_8.pdf#page=33.


NAVE, J., FONSECA, S., (2000). Fenomenologia e Mobilização de Recursos das Organizações Não-Governamentais do Ambiente, Comunicação apresentada ao IV Congresso Português de Sociologia. Coimbra.


UOI-FEUP, (s/d), Liderança e Gestão de Equipas.Data de consulta: 16 de Janeiro de 2008, de http://paginas.fe.up.pt/~contqf/qualifeup/UOI/documents/Docs_Workshops_Formacao/Manual%20de%20Lideranca%20e%20Gestao%20de%20Equipas.pdf.

VIEGAS, J., (2004), Implicações Democráticas das Associações Voluntárias- o caso português numa perspectiva comparada europeia, Sociologia, Problemas e Práticas, nº 46, pp. 33-50.

AINDA SOBRE FERRO ALVES


AINDA SOBRE FERRO ALVES

Um texto da minha autoria com uma visão sobre os Açores de Ferro Alves, jornalista e advogado deportado nos Açores durante oito meses, que foi um dos participantes na Revolta que ocorreu nos Açores e na Madeira, em 1931, despertou muita curiosidade em vários leitores que me contactaram pelos mais diversos meios.

Uns queriam ter acesso ao livro para o ler na íntegra, outros queriam saber se era muito grande o número de deportados nos Açores e que influência tiveram os mesmos na vida social e política do arquipélago e outros, ainda, queriam ter acesso a outras fontes que abordassem o tema da oposição à ditadura militar, nomeadamente para conhecer quem, nos Açores, se manteve fiel aos ideais democráticos da Primeira República e que reações terão havido à publicação do livro de Ferro Alves “A Mornaça- A Revolta nos Açores e Madeira em 1931”, editado, em 1935, pela Parceria António Maria Pereira.

Neste texto, por não ser a pessoa mais indicada para o fazer, não vou responder a todas as questões levantadas. Assim, antes de apresentar algumas sugestões de leitura e de dar a conhecer uma forte crítica ao referido livro, farei referência às opiniões de Ferro Alves sobre algumas pessoas influentes na sociedade micaelense.

Segundo Ferro Alves, algumas leis de 1911 ainda não se aplicavam em 1930 pois “a gerontocracia que domina a política local, impede que os governos, sejam quais sejam, de se inteirem das ilegalidades praticadas pelos feudais micaelenses”.

Sobre a evolução da vida política ao longo dos tempos, Ferro Alves escreve o seguinte: “Convém esclarecer que em São Miguel não há opiniões doutrinárias. Existe simplesmente uma oligarquia que através de diversas pessoas manda sempre. Com a Monarquia, com a República, com a Ditadura, o mesmo grupo segue dando leis e impondo a sua hegemonia. Os figurantes mudam, conforme os quadrantes, mas o espírito permanece inalterável”.

Ferro Alves não se limita a emitir a sua opinião e apresenta casos de alguns cidadãos que aquando da revolta e pensando que esta poderia ser vitoriosa “viraram a casaca”. Aqui vai um extrato: “…Como este cidadão procederam alguns outros destacados conservadores que durante a minha efémera passagem pela referida gazeta aproveitavam o mais descabelado pretexto, para me visitarem prodigando frases desdenhosas para os deuses, que adoravam antes, e de francos encómios, para o sol, que na sua miopia julgavam nascente”.

No que diz respeito a bibliografia que poderá ser consultada, entre outos, recomendo a leitura do livro “A Revolta da Madeira e Açores (1931) ”, de Célia Reis, da editora “Livros Horizonte” e o artigo “Autoritarismo e Resistência nos Açores – O Papel do Delegado Especial do Governo da República nos Açores, 1927-1931”, da autoria de José Olívio Rocha, publicado, em 2008, no Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira.

Não conhecendo qualquer reação açoriana ao livro de Ferro Alves, limito-me a referir a que foi publicada, no dia 16 de novembro de 1935, na revista quinzenal “Gazeta dos Caminhos de Ferro”, com o sugestivo título: “A propósito de um livro miserável. Murraça ou Mornaça?

Na apreciação ao livro, entre outras considerações, podemos ler o seguinte:

É claro que, ante a enérgica decisão das tropas do Governo e a ação heroica dos oficiais e soldados da Ditadura Nacional, e embora o Senhor Alves e os seus Companheiros tivesse desembarcado, nos Açores, pletóricos de energia, animosos de fortes desejos animais, prenhes de seiva e dinamismo havia de acabar na tal morrinha que lhes fez ver que a vida não tem beleza.

E como aquele senhor já espera contra si as duras flechas envenenadas, cá ficamos na linha dos atiradores para ver se com uma boa dose de murraça o Senhor Alves acorda da Mornaça em que caiu.”

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31059, 19 de outubro de 2016, p.16)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Goya e a tauromaquia


Goya e a tauromaquia

Muito recentemente adquiri a publicação “A Vida e a Arte de Goya”, inserida na publicação quinzenal “Iniciação – Cadernos de Informação Cultural”, editada, em 1943, pelo Professor Agostinho da Silva.

Francisco José de Goya y Lucientes (1746 - 1828) foi um pintor e gravador espanhol que, segundo Agostinho da Silva, embora mantendo relações com gente da corte não perdeu a independência e o “gosto de livre crítica”, continuando a ser um “homem do povo do nascimento à morte”.

Nos últimos anos da sua vida, “apesar da velhice e da doença, a sua capacidade de trabalho não diminui” tendo gravado “os Provérbios e a Tauromaquia”

Talvez pelo simples facto de ter obras sobre a tauromaquia, Goya foi, durante muitos anos, considerado um defensor das touradas, tendo sido um dos grandes vultos da cultura citado pelos adeptos das mesmas em defesa da sua continuação. A título de exemplo, ainda em 2010, Ignacio Gonzalez, vice presidente da Comunidade de Madrid socorria-se do “interesse de grandes artistas pelo espetáculo taurino”, entre eles Goya, para anunciar que o seu governo iria declarar as touradas como “bem de interesse cultural”.

Através de uma leitura mais recente da obra de Goya, os especialistas chegaram à conclusão de que ao contrário de ser defensor das touradas aquele terá sido um crítico da violência tauromáquica.

José Manuel Matilla, conservador do Museu do Prado, referindo-se a uma exposição sobre Goya que esteve patente naquele museu escreveu:

"A crítica romântica apresenta um Goya taurino, que inclusive na juventude chegou a tourear, mas essas gravuras são uma grande crítica à tauromaquia, especialmente pela enorme violência para toureiros e cavalos. A série termina com a morte de Pepe Hillo na Praça de Madrid, o mais famoso toureiro, que levou à proibição de touradas. Para Goya, as touradas não são ações heroicas, mas sim o medo e o terror, a morte, a violência e a irracionalidade”.
Segundo Sabela Rodríguez Álvarez, aquando da inauguração da referida exposição o escultor, Juan Bordes, destacou “quatro pinturas batizadas como Los toros de Burdeos, que mostram “o touro como o único inocente”, frente aos rostos do público e dos toureiros, que são representados de forma "monstruosa", como a personificação de "quem quer se alimentar de sangue”.
Teófilo Braga

(Correio dos Açores, 31058,18 de outubro de 2016, p. 14)

terça-feira, 11 de outubro de 2016

As touradas vistas por Leonel Ferro Alves



As touradas vistas por Leonel Ferro Alves

No último texto, apresentamos a visão de Leonel das Dores Ferro Alves sobre a ilha de São Miguel. Hoje aproveitamos o espaço que nos é disponibilizado para dar a conhecer como ele viu uma tourada à corda na ilha Terceira, onde esteve deportado durante quinze dias.

Com referimos no texto anterior, Ferro Alves quando escreveu o livro “A Mornaça” já havia aderido ao Estado Novo, depois de ter participado, em 1931, na Revolta da Madeira e dos Açores que pretendia derrubar a Ditadura Militar.

A seguir, apresentamos alguns extratos de um relato do que viu Ferro Alves, que como aficionado de touradas queria mais, isto é queria que os touros marrassem mais. Segundo ele “a mornaça transforma em insipidez, os mais emocionantes espetáculos”.

Tal como outros autores, como por exemplo o terceirense Alfredo da Silva Sampaio, que descreveram as touradas à corda antes dele, Ferro Alves refere as agressões de que eram vítimas os animais por parte dos participantes, como se poderá confirmar pelos seguintes excertos:

“Na praça da terra reúnem-se todos os habitantes no meio de uma chinfrineira aguda empunhando cacetes e com mais abundância guarda-chuvas. Esse instrumento antipático e avelhado disfruta aqui de irresistíveis simpatias”

“Animados pela mansidão do cornúpeto, los diestros, puxam-lhes o rabo, espicaçam-no com a ponta das malditas sombrinhas, provocam-no com lenços escarlates…”.

“O espetáculo termina com a lide de alguma vaca, mãe respeitada de numerosa prole. Insensível aos guarda-chuvas e às chaquetas permanece estática no meio da praça entre as chufas da multidão. Para arrancá-la à sua passividade chegam a picá-la com sovelas. Eu vi uma tão pachorrenta, que um indígena no meio do entusiasmo da assistência, puxava-lhe cinicamente as orelhas”.

Ferro Alves, muito crítico das “oligarquias” que governavam e dominavam os Açores, no seu livro escreve: “Nestas touradas somente tomam parte como aficionados elementos populares. Os filhos dos sobas e régulos, classifico assim os personagens locais, abstêm-se de participar nestes folguedos. A sua seriedade de jarrões impede-os de se misturarem a tudo o que seja dinamismo.”

A afirmação anterior não contradiz o que sobre o assunto escreveu Paulo Silveira e Sousa, no texto “As elites, o quotidiano e a construção da distinção no distrito de Angra do Heroísmo durante a segunda metade do século XIX” (http://hdl.handle.net/10400.3/399) publicado na revista Arquipélago História, em 2004, que referindo-se às touradas à corda na segunda metade do século XIX, escreve:

“As touradas eram um palco para demonstrações de força, de destreza, e para as relações entre classes segundo o velho modelo paternalista e hierárquico. Apesar de serem frequentadas por todos os grupos sociais, tanto urbanos como rurais, não podemos daqui inferir apressadamente a conclusão de que estas eram uma espécie de espaço igualitário. Só aparentemente a tourada era um espaço sem distinções de classe. A marca do ganadeiro que apresentava os touros, a presença das suas equipes, dos seus pastores, ou a sua própria presença pessoal criavam logo diferenças, dando-lhe visibilidade e notoriedade….Entre os senhores de gravata da cidade, as suas esposas e filhas, que de um balcão seguro observavam o touro, e os camponeses descalços que corriam fugindo das investidas do animal, as diferenças estavam novamente bem claras.

Sobre a atividade propriamente dita, Ferro Alves acrescenta:

“O animal resolve-se finalmente a investir depois de laboriosa deliberação. Os artistas abandonam a presa e os instrumentos de combate. Se porventura o triste novilho consegue alcançar algum dos seus algozes, rasgando-lhe com uma cornada o fundilho das calças, o gentio delira. Há palmas e vivas, desmaios e chiliques. Os marmanjões que sustentam a corda que prende o bicho puxam dela desesperadamente até que imobilizam completamente o bicharoco. Se este num movimento ocasional se volta, enfrentando-se com os moços de corda, então o pânico é indescritível.

Um autêntico salve-se quem puder. Os muros e as árvores são impotentes para conter a correria vertiginosa, alucinada, dos pretensos campinos. Chiam como ratazanas aprisionadas na ratoeira”.


Teófilo Braga

(Correio dos Açores, 31053, 12 de outubro de 2016, p.16)

Imagem: https://www.facebook.com/Basta.pt/photos/a.472890756075069.108951.143034799060668/1253462631351207/?type=3&theater

As primeiras associações de Proteção dos Animais



As primeiras associações de Proteção dos Animais


A primeira associação criada em Portugal com o fim de defender da malvadez humana “os pobres seres, zoologicamente a nós inferiores” terá sido criada por “um conjunto de cidadãos portugueses e ingleses”, em Lisboa, no ano de 1875, com a designação de “Sociedade Protetora dos Animais”.

Três anos mais tarde, em 1878, surgiu na cidade do Porto uma associação congénere com a denominação de Sociedade Protetora dos Animais do Porto (SPAP), a qual durante alguns anos foi dirigida por um açoriano.

De acordo com Alice Moderno, a Sociedade Protetora dos Animais do Porto, presidida pelo micaelense Dr. José Nunes da Ponte, em 1913, que realizava um trabalho, “que tanto honra e levanta o nível moral da cidade onde se expande e progride”, devia servir de incentivo e exemplo aos micaelenses que dois anos antes haviam tomado nas suas mãos a criação da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais.

No ano referido, a SPAP disponha de uma receita de 1505 escudos, na moeda portuguesa, ou sejam 1881 escudos na moeda insulana, o que lhe permitia “proteger eficazmente os animais, mantendo fontenários, distribuindo prémios, custeando um posto veterinário, tendo empregados remunerados, escritório com telefone, que prontamente comunica com todos os pontos da cidade, etc. etc.”

Nos Açores, embora a ideia da criação de uma associação de proteção dos animais seja mais antiga e as primeiras reuniões tenham ocorrido em 1908, a primeira organização que se formou foi a Sociedade Micaelense Protetora dos Animais (SMPA), com estatutos elaborados tendo por base os da Sociedade Protetora dos Animais, de Lisboa.

Legalizada a SMPA, a 13 de Setembro de 1911, foram seus fundadores: Caetano Moniz de Vasconcelos (governador civil), Alfredo da Câmara, Amâncio Rocha, Augusto da Silva Moreira, Fernando de Alcântara, Francisco Soares Silva, José Inácio de Sousa, Joviano Lopes, Manuel Botelho de Sousa, Manuel Resende Carreiro, Marquês de Jácome Correia, Miguel de Sousa Alvim, Alice Moderno e Maria Evelina de Sousa.
No ano em que foram aprovados os estatutos da SMPA, surgiu na ilha Terceira, com o fim de “proteger dos maus tratos todos os animais não considerados daninhos… e animar o exercício da caridade para com os animais, estabelecendo para isso prémios e recompensas sempre que permitam os recursos da sociedade”, a SPAAH - Sociedade Protetora dos Animais de Angra do Heroísmo.
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31052, 11 de outubro de 2016, p.16)

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Os Açores vistos por um continental “com maus fígados”.


Os Açores vistos por um continental “com maus fígados”.

Leonel das Dores Ferro Alves é um nome que nada diz à esmagadora maioria dos açorianos. Contudo, a sua vida está ligada à história dos Açores, pois cá esteve como deportado, tendo participado na “Revolta nos Açores e Madeira”, em 1931.

Leonel Ferro Alves foi um jornalista e advogado que nasceu, a 2 de fevereiro de 1904, no lugar de Carvalhal, freguesia de Souto, no concelho de Abrantes e faleceu em Lisboa no dia 8 de janeiro de 1963, encontrando-se sepultado no cemitério do Alto de São João.

Há muitos aspetos da vida de Ferro Alves que ainda não estão bem esclarecidos. Assim, sabe-se que, em 1929, foi preso, por razões políticas, acabando por ser deportado para os Açores, depois de ter saído da cadeia do Aljube. Após ter passado pela ilha Terceira onde chegou a 24 de julho de 1930, veio para a ilha de São Miguel onde, aquando da revolta mencionada, assumiu a direção do jornal “Correio dos Açores”.

Mais tarde, Ferro Alves ter-se-á zangado com os opositores da ditadura tendo, segundo Manuel Paula Maça, embora não haja qualquer prova escrita, sido “conselheiro de Salazar” ou “espião do governo de Salazar sobretudo (mas não apenas) por causa da intriga em torno de uma operação de contrabando de armas, no período da II república espanhola, que dá o mote ao seu livro “Os Budas”.

Sobre os Açores, quer acerca das suas belezas paisagísticas, quer acerca do viver das suas gentes, já tivemos a oportunidade de ler a opinião de diversos visitantes, quer nacionais quer estrangeiros. Mas, nunca lemos nada tão desfavorável como o que escreveu Ferro Alves, como o leitor poderá ter a oportunidade de ajuizar pelos exemplos que a seguir apresentamos.

Sobre o Correio dos Açores, que Ferro Alves nos primeiros dias terá chegado a escrever sozinho, diz a dado passo: “ Ali deparei com um flamante artigo dum professor do liceu cujo nome não me recordo…Nele, o seu autor, que é um soba importantíssimo fulminava com rotundos adjetivos o cinema sonoro, que aliás nunca tivera ocasião de apreciar. Receoso de que tal catalinaria pusesse em perigo os capitais empregados nessa indústria, não o publiquei….Sem mim o tal professor teria afundado irremediavelmente a sétima arte, no seu aspecto sonoro, pois convém aclarar que o grotesco soba era partidário do cinema mudo”.

Sobre a cidade de Ponta Delgada, Ferro Alves escreveu o seguinte:” …o que posso afirmar, porque residi oito meses em Ponta Delgada, é que não conheço cidade mais sonolenta e insípida. Nas suas ruas calçadas dumas pedras duras, que deformam os sapatos e obrigam a um passo bamboleante de marinheiro embriagado, os transeuntes caminham vagarosamente …”

Sobre as Sete Cidades como ponto de atração turística, Ferro Alves escreve que é “um disparate sem classificação” argumentando do seguinte modo: “Pode um cidadão permanecer um més inteiro em Ponta Delgada, ir diariamente ao sítio da Lagoa e a bruma persiste durante todo esse tempo, impossibilitando-o de contemplar o fenómeno. Como é possível fazer turismo à base duma coisa que, só por si, por um acaso fortuito, se pode admirar? Pensá-lo, já de si, é uma rematada tonteria”.

As Furnas, também são arrasadas por Ferro Alves que escreve que a sua “única utilidade” é “poder ser um balneário magnífico, para que os indígenas curem o reumatismo, já que para a mornaça não há remédio possível”.

Termino com a opinião de Ferro Alves, que por vezes põe alguns dedos em algumas feridas que ainda hoje não estão curadas, sobre as relações entre os Açores e o continente. Segundo ele, “o açoreano não é patriota, nem a sua reduzida cultura mental lhe permite manter relações espirituais com a metrópole” e acrescenta: “Como elemento de observação reputo importante atentar no analfabetismo, que corroe as ilhas com um carácter endémico”.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31048, 5 de outubro de 2016, p.6)

No Dia do Animal



NO DIA DO ANIMAL

“É bendita a propaganda que se faça a favor dos animais; e é bendita, porque significa Bondade, porque sobretudo tende a minorar o sofrimento dos maiores amigos do homem” (Alice Moderno)
Hoje, 4 de Outubro, celebra-se, uma vez mais, o Dia Mundial do Animal que, de acordo com algumas fontes, terá sido declarado em 1929, num Congresso de Proteção Animal realizado na Áustria.
A escolha do dia está relacionada com a data da morte de São Francisco de Assis, 4 de Outubro de 1226, que em sua vida amou e protegeu os animais, tendo chegado a comprar aves engaioladas apenas com o objetivo de as soltar e de as ver de novo em liberdade.
Nos Açores, quando se comemora o Dia do Animal não se pode esquecer todos os que ao longo da sua vida tudo fizeram para que os animais tivessem uma vida mais digna. Entre estas pessoas, destaca-se a figura de Alice Moderno, uma das fundadoras e grande dinamizadora da SMPA- Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, de 1914 a 1946.
A maioria das associações e das pessoas que se dedicam à causa animal têm com o seu ativismo um duplo objetivo, defender os animais e educar os humanos. Este desiderato, que não é recente, é bem evidenciado no extrato seguinte, publicado no Zoophilo em 1877: “(…)minorar as sevecias inuteis contra os animaes prestadios, melhorar as condições da sua, forçadamente curta e precaria existência entre nós, seus senhores naturaes, e em summa, e principalmente, por meio do irracional civilisar o homem; essa é a nossa questão; a isso tendem os nossos esforsos (…) levantar o seu nível moral”.

Apesar do Dia do Animal já ser comemorado há cerca de 90 anos e da (pretensa) evolução das mentalidades, hoje os militantes da causa animal continuam a ser vítimas da incompreensão por parte de um sector da sociedade, que por vezes nada faz para que tanto pessoas como animais tenham uma vida mais digna.

O principal argumento usado por alguns políticos, aos mais diversos níveis, para humilhar os defensores dos animais e para menosprezar a causa é o de sempre, isto é considerar que há sempre outra causa que merece ser defendida e que é prioritária. Dar-lhes-ia o benefício da dúvida se eles não fossem os principais responsáveis pelas dificuldades e injustiças de que são vítimas os humanos, para além de também serem corresponsáveis pela falta de civismo e de educação.

Uma resposta a estes ataques já foi dada, em 1909, pela SPAP-Sociedade Protetora dos Animais do Porto que respondeu da seguinte forma: “a proteção contra os maus tratos dos animaes não humanos não prejudica a prática da caridade, antes educa para a bem exercer”. Não sei em que sentido a SPAP usou a palavra caridade, mas apenas concordo com ele se for o que é atribuído por Agostinho da Silva que escreveu: “tempo virá de caridade, entendendo-se caridade não como aquele suplemento de humilhação que se leva aos que caíram na luta, mas como amor irrestrito que, embora consciente dos defeitos do amado, o ama sem pensar em saldo positivo ou negativo”.

Teófilo Braga
( Correio dos Açores, 31047, 4 de outubro de 2016, p.13)