terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A Madeira e as plantas dos Açores

 


A Madeira e as plantas dos Açores

 

Desde o descobrimento das ilhas houve intercâmbio de pessoas e de bens entre os arquipélagos dos Açores e da Madeira.

 

No que diz respeito à vegetação algumas plantas existentes na Madeira foram trazidas para os Açores, acontecendo o mesmo em sentido contrário.

 

Lembro-me de, há alguns anos, ter visitado na ilha da Madeira os magníficos Jardins da Quinta do Palheiro e ter encontrado uma vidália (Azorina vidalii), espécie endémica dos Açores que pode ser encontrada em algumas faixas do litoral de todas as ilhas. Lembro-me de, na ocasião, ter perguntado ao jardineiro o nome da planta, tendo ele respondido que não conhecia, mas sabia que a planta era dos Açores.

 

Da Madeira para os Açores, temos conhecimento de um pequeno número de plantas, endémicas ou não daquela região, que foram trazidas para cá para serem usadas com os mais diversos fins, desde os alimentares aos ornamentais.

 

Uma das primeiras plantas trazidas da Madeira foi a cana-de-açúcar (Saccharum officinarum), no século XV. Oriunda da Ásia a cultura da cana-de-açúcar nos Açores nunca ocupou a área nem atingiu a produção obtida naquele arquipélago. De acordo com Carreiro da Costa, o cultivo da cana-de-açúcar deixou de ser praticado, entre nós, na segunda metade do século XVII e as ilhas Graciosa, Pico, São Jorge e Corvo não a conheceram como cultura industrial.

 

A caiota, chuchu ou pimpinela (Sechium edule), oriunda da América Central, de acordo com um texto publicado na revista, da SPAM- Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, “O Agricultor Michaelense”, veio da Madeira, remetida pelo senhor Camilo José de Gouveia. De acordo com a mesma fonte, daquele arquipélago, vieram duas variedades, uma que produzia um fruto pequeno e outra cujo fruto tinha tamanho duplo ou triplo do primeiro.

 

Outra planta vinda do arquipélago da Madeira, mais propriamente do Porto Santo, foi a malva-arbórea (Lavatera arborea). As sementes chegaram aos Açores, em 1845, por intermédio do Tenente-Coronel António Homem da Costa Noronha, tendo sido semeadas em São Miguel em fevereiro de 1846 e na Terceira e no Faial, em 1848.  De acordo com “O Agricultor Michaelense”, a planta, que podia atingir a altura de 10 pés e a grossura de duas a três polegadas, era usada para a extração de fios usados no fabrico de cordas ou em “mimosos bordados”.

 

O til (Ocotea foetens), árvore endémica da Madeira e das Canárias que hoje pode ser encontrado no Jardim Botânico José do Canto, no Pinhal da Paz, na Mata da Lagoa do

Congro, no Jardim do Palácio de Santana e no Parque Terra Nostra também terá vindo da Madeira. José do Canto inclui o til, na lista das principais plantas existentes no seu jardim de Santana em 1856.

 

Possivelmente de introdução mais recente, a cletra ou verdenaz (Clethra arbórea), endémica da Madeira e das Canárias, é hoje em São Miguel uma das invasoras mais nocivas, podendo ser vista não só em alguns jardins, mas também na Tronqueira ou nas Lombadas. Embora alguma bibliografia indique que se trata de uma ornamental escapada de jardins, algumas fontes sugerem que a mesma foi introduzida a partir da Madeira por um serviço oficial da Região Autónoma dos Açores.

 

Cada vez mais comum nos nossos jardins particulares é o massaroco (Echium candicans), espécie endémica da Madeira. Cultivada como ornamental, em vários países de clima temperado, o massaroco apresenta uma inflorescência alongada, que pode atingir 35 cm, com flores de cor azul ou arroxeada.

 

Por último, apresento outra espécie endémica da Madeira, mais rara entre nós, o gerânio da Madeira (Geranium maderense) que tive a oportunidade de ver e fotografar no Pico da Pedra, antes de ser destruído pelo fio de uma roçadeira. Podendo atingir até 1,5 m de altura. sendo o maior dos gerânios, esta espécie tem um grande valor ornamental dada a beleza das suas flores rosa magenta.

 

Teófilo Braga

(Correio dos Açores,32368, 24 de fevereiro de 2021, p. 11)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Poema de Júlio Oliveira

 


Poema de Júlio Oliveira

 

ao Teófilo Soares Braga 

 

das vidas inominadas e dos apelidos sem nome 

reconduzes na candeia luminosa das ruas sem espaço 

o seu tempo no nosso tempo tão escasso 

de conter as pessoas sem tanto ou quanto renome 

na memória colectiva de uma terra 

sem margens expressivas para comendas  

sem justiça civil que nos mereça louvar 

senão pelo demérito de quem dá mérito 

que o repões com tanto brio na sua justiça de o julgar 

 

vila-franquense que tu também vida exemplar 

das vidas tantas que tu nomeaste 

dos exemplos máximos que tu louvaste  

trouxeste do céu as memórias de quem revelou 

ao mundo os dons que gratuitamente doou: 

e tu vila-franquense sem manchas nódoas nem feitios 

que sempre soubeste onde andavas 

sopras somenos os méritos pelos favores 

e trazes à baila tanto os fervores 

de quem se revelou digno das tuas palavras 

 

assim despeço-me de ti ó digna vida 

que de prometida a exemplar a remetida 

para a cápsula eterna dos que eternos 

na história desta terra de gente ilustre 

por mais que nos digam que tanto custe 

valer a pena contar a nossa história 

brindemos então à tua memória 

e façamos um banquete juntos ó açorianos 

aos acéfalos dos próximos anos! 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Humberto Furtado Costa, um ambientalista social-democrata

 


Humberto Furtado Costa, um ambientalista social-democrata

 

Humberto Manuel Furtado Costa, filho de Luís Furtado Costa e de Fernanda Maria Costa, nasceu a 3 de novembro de 1950 e faleceu a 20 de agosto de 1989.

 

Foi funcionário da SATA com a categoria de empregado de escritório e um amante da atividade física, sendo um frequentador diário da antiga piscina de São Pedro, em Ponta Delgada, e um apaixonado pelo pedestrianismo que praticava sozinho, com grupos de amigos e mais tarde no âmbito da associação Amigos dos Açores.

 

Politicamente, o Humberto Costa, por mais de uma vez me confidenciou que era adepto da social-democracia escandinava, sendo admirador de Olof Palme, primeiro ministro sueco que fez com que a Suécia, a par de uma forte economia, tivesse os mais altos níveis de assistência social do mundo.

 

Humberto Costa foi admitido como associado dos Amigos dos Açores, com o número 41, a 2 de setembro de 1985. Em 1987, fez parte da direção do Núcleo dos Açores dos Amigos da Terra-Associação Portuguesa de Ecologista (designação inicial) e no mesmo ano, juntamente com Eduardo Lopes, Francisco Botelho, Gualter Cordeiro, Lúcia Ventura, Luís Cordeiro, Mário Melo, e Teófilo Braga, assinou a escritura criação dos “Amigos da Terra/Açores” (a segunda designação da associação). Foi seu presidente do conselho fiscal em 1988 e 1989.

 

No seu boletim “Vidália”, de outubro/dezembro de 1989, a associação Amigos dos Açores, homenageou-o com um texto que, parcialmente, a seguir transcrevemos:

 

“… Este desde sempre grande amante da Natureza e da Vida, com apenas 38 anos de idade, viu-se repentinamente a braços com uma injusta doença incurável que em menos de 1 ano o venceu, perante a impotência e a dor de todos os Amigos da Terra, em especial daqueles com quem mais conviveu em inúmeras reuniões, passeios e visitas de estudo. Até à última hora preocupado e revoltado com a falta de consciência ecológica que por aí vai, o Humberto Costa era um profundo conhecedor de todos os cantos naturais da sua ilha de S. Miguel, aproveitando todos os tempos livres para explorá-la em longas caminhadas a pé. (…) Os Amigos dos Açores-Associação Ecológica recordá-lo-ão sempre com saudade e tudo farão para cumprir o seu desejo de fazer dos Açores uma terra onde o respeito pela Natureza e a Vida seja uma realidade.”

 

A partida do Humberto Costa foi muito sentida pelos seus amigos e colegas de trabalho. Um deles, José Artur Jácome Correia, escreveu um belo texto, intitulado O dobrar dos sinos”, publicado no Correio dos Açores a 24 de outubro de 1989. Por subscrevermos na integra o que o seu autor escreveu sobre o Humberto, abaixo transcrevemos um extrato:

 

“(…) Desta última não poderia deixar de realçar – por ter falecido há poucos dias – o meu grande amigo Humberto Furtado Costa, com o qual comungava em grande medida dos mesmos ideais, ideologias e sentimentos.

 

Ironia das ironias. Eu que não o via desde que acometido pela doença que o havia de vitimar oito meses mais tarde, vi-o por mero e fortuito acaso, no hospital, dois dias antes da sua morte. O choque de que fui acometido ao constatar o seu estado debilitado, de completa transfiguração e de sofrimento, acompanhar-me-á por muitos anos.

Afinal, o que existe de mais belo neste mundo – para além das maravilhas criadas por Deus- são o amor e a amizade. Mas a amizade sincera liberta de interesses, geradora de elos tão fortes que perduram mesmo para além da morte.”

 

Terminamos este texto de homenagem a um amigo e companheiro de luta por um Mundo Melhor, referindo que infelizmente o Humberto apenas nos deixou dois textos escritos que foram publicados no jornal “Açoriano Oriental”, ambos a chamar a atenção para a grave situação em que se encontrava o nosso património natural”.

 

No último texto, publicado a 25 de março de 1987, Humberto Costa para além de denunciar vários atropelos à boa gestão do território, denuncia o facto das leis ficarem no papel, nos seguintes termos: “… foi, entretanto, aprovado pelo Parlamento, diversas leis de proteção da natureza, como são os casos da lei de proteção dos arvoredos, criação de diversas reservas naturais, etc. só que (muito embora seja de louvar a iniciativa) uma coisa é fazerem-se leis, outra é aplicá-las efetivamente”.

Teófilo Braga

 

(Correio dos Açores, 32362, 17 de fevereiro de 2021, p.11)

Leucadendron argenteum (L.) R.Br.

 



Leucadendron argenteum (L.) R.Br.

 

Nome comum- árvore da prata

 

Família: Proteaceae

Origem- Península do Cabo, na África do Sul

Local- Calhetas

15 de fevereiro de 2021

 

A árvore da prata é uma espécie ameaçada de extinção por isso é protegida na África do Sul. Dada a sua beleza é cultivada como ornamental.

 

Vi-a pela primeira vez na freguesia das Calhetas, tendo-me chamado a atenção a cor prateada e brilhante das suas folhas.

 

Por mero acaso, através da leitura de um texto de homenagem ao Coronel Francisco Afonso Chaves (1857-1926), acabei por descobrir que foi aquele ilustre micaelense o introdutor daquela espécie na ilha de São Miguel?

 

Alguém conhece outro exemplar na nossa ilha?

 

Teófilo Braga

16 de fevereiro de 2021

 

 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Apontamentos sobre António Borges (2)

 

Imagem - Vidália, nº 2, Janeiro-Abril de 1990

Apontamentos sobre António Borges (2)

 

António Borges foi o primeiro presidente da Direção, denominada Conselho Administrativo, do Clube Micaelense, associação criada a 14 de janeiro de 1857. Aquela associação, elitista e fechada à comunidade, só era visitada diariamente por homens, ocorrendo a frequência das mulheres apenas nos dias de festa acompanhadas dos maridos, tinha por finalidade “promover a ilustração e convivência de todos os seus membros, e de suas respectivas famílias, pelo emprego de reuniões diárias, gabinete de leitura, jogos de bilhar, de gamão, de xadrez e bailes, sem qualquer fim político ou religioso”.

 

Parece-nos muito reduzido o contributo de António Borges para a vida associativa do Clube Micaelense. Com efeito, de acordo com Aníbal de Bettencourt Bicudo e Castro, apenas se sabe que no ano de 1858, fez parte de duas comissões criadas para preparar a receção ao Infante D. Luiz que acabou por não visitar São Miguel e que no ano de 1858 emprestou a quantia de 100$000 réis para a aquisição de um relógio. Por seu lado, Margarida Vaz do Rego Machado, refere também a colaboração de António Borges através do empréstimo que subscreveu, com outros sócios, para pagamento de obras na sede quando a mesma foi arrendada à senhora D. Maria Ana Guilhermina Fischer.

 

Em 1861, António Borges foi viver para Coimbra para acompanhar os estudos do enteado Caetano de Andrade de Albuquerque. Na cidade dos estudantes, onde viveu até 1868, colaborou com o Jardim Botânico de Coimbra, tendo oferecido várias árvores de fruto que adquiriu para o efeito e projetado a Avenida das Tílias.

 

Em 1886, por decisão do Dr. Henrique do Couto d’Almeida, da Universidade de Coimbra, o naturalista e jardineiro chefe do Jardim Botânico de Coimbra, Edmond Goeze, veio a São Miguel, tudo indica por sugestão de António Borges, com o objetivo de recolher plantas destinadas a enriquecer as coleções daquele jardim porque “vários cavalheiros haviam offerecido generosamente ao nosso jardim plantas de suas ricas e abundantes coleções”

 

Edmondo Goeze nas seis semanas em que esteve em São Miguel visitou vários jardins, tendo contatado com António Borges. No texto que publicou, depois de descrever várias espécies existentes no Jardim de António Borges, Edmond Goeze (1887) referiu-se ao cultivo do ananás em algumas das suas estufas “cujos frutos têm chegado quasi a 14 libras em peso”. Também agradeceu todas as informações prestadas por António Borges “e o modo extremamente amável com que nos tractou durante todo o tempo, que estivemos na ilha”.

 

Ainda relativamente à cultura do ananás, António Borges foi o introdutor da estufa “victoriana” que é a que ainda existe (Partilha, 120, setembro de 2016), aceitando-se o ano de 1864 como o do início da sua exportação. Esta deveu-se a José Bensaúde (1835-1922) que depois de obter o consentimento de António Borges, segundo João Carlos Macedo mandou construir a primeira estufa para fins de exploração comercial em São Roque.

 

Para além da ligação de António Borges aos primeiros passos da cultura do ananás, ele também está associado à diversificação agrícola, de que é exemplo a introdução de novas castas de vinha. De acordo com Manuel Ferreira, em 1853, António Borges importou de Paris 1000 pés de vinha-de-cheiro ou americana.

 

António Borges, ao longo dos tempos, tem sido alvo de várias homenagens. Assim, aquando da passagem do 125º aniversário da sua morte, a Junta de Freguesia da Fajã de Baixo e a Câmara Municipal de Ponta Delgada organizaram uma celebração conjunta que ocorreu no dia 26 de março de 2004.

 

No âmbito da comemoração da data a Câmara Municipal de Ponta Delgada apresentou publicamente um projeto de melhoramento do Parque da Cidade (Jardim António Borges), orçado em 1 300 000 euros. Por seu lado, a Junta de Freguesia da Fajã de Baixo organizou uma sessão pública que teve como ponto mais alto uma conferência proferida por Isabel Soares de Albergaria.

 

Teófilo Braga

 

(Correio dos Açores, 32356, 10 de fevereiro de 2021, p.11)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O Dr. Lúcio de Miranda e o Encanto das Matemáticas





O Dr. Lúcio de Miranda e o Encanto das Matemáticas
Em homenagem ao Dr. Lúcio de Miranda
O Dr. Lúcio de Miranda (1904-1962), natural de Goa, foi um professor de matemática no Liceu de Ponta Delgada que, em 1954, fruto da pressão exercida por Salazar para que por todo o país as mais diversas entidades manifestassem o seu repúdio pelo movimento gandhista que pretendia libertar os territórios ocupados por Portugal na Índia, viu-se forçado a pedir a demissão de professor e a partir para Inglaterra, onde acabou por falecer em 1962.
Com a sua postura ética, o Dr. Lúcio Miranda marcou a vida cultural da ilha de São Miguel, tendo sido fundador e vice-presidente da Academia Musical de Ponta Delgada e criado o “Centro de Estudos de Matemática e Física do Liceu Nacional de Antero de Quental.
Portador de uma cultura muito vasta, o Dr. Lúcio Miranda era conferencista em várias sessões não só sobre temas diretamente relacionados com a sua formação universitária, a matemática, mas também sobre temas muito diversos, de que é exemplo uma conferência que proferiu na Academia Musical de Ponta Delgada, em 1948, intitulada “O Romance de Chopin” ou uma palestra radiofónica proferida em 1938 com o título “ Sábado Magro (variações sem tom…)”.
Dos vários textos da sua autoria, destacamos “Mahatma Gandhi- Perfil-Vida e Ação-Doutrina”, publicado na revista “Insulana”, volume IV, nº 1, de 1948 e “O encanto das Matemáticas”, publicado no Correio dos Açores, de 8 de outubro de 1932 e que pelo seu interesse e por não ter perdido atualidade, em sua homenagem, se transcreve na íntegra.
Teófilo Braga
O Encanto das Matemáticas
Desde a mais remota antiguidade todos os povos que conheceram a Civilização cultivaram as matemáticas – uns levados por necessidades de ordem prática, outros atraídos pelo prazer do espírito. E porque a Matemática “tem invenções subtis, que servem tanto para facilitar as indústrias como para contentar os curiosos”, os homens cedo compreenderam a sua utilidade e a sua beleza.
O meu tema não é a utilidade das matemáticas – é a beleza. Mas, de passagem, não quero deixar de me referira algumas das suas inúmeras aplicações.
- Na astronomia, é por meio dos cálculos que se prevê o movimento dos corpos celestes; na física, a matemática supre muitas vezes a experiência e abrevia o conhecimento dos resultados; nas finanças, ensina a calcular os juros, as anuidades e as rendas; na agrimensura, facilita os trabalhos topográficos; na engenharia, ajuda a determinar a resistência dos materiais; na navegação, orienta e guia os marinheiros; nas artes militares, resolve as questões do tiro…E não continuamos nesta ordem de ideias, porque só de matemáticas aplicadas existe um grosso dicionário, publicado por um erudito francês, depois de trinta anos de trabalho.
Podem V.V. Exas calcular como é útil ao homem o estudo da Matemática.
Porém, não é somente da utilidade que dimana todo o seu interesse. Ela encerra uma soma tão grande de Perfeição, de Harmonia e de Beleza, que Poisson afirmava: “A vida só é bela a estudar e a ensinar as matemáticas!”
Não lhe perfilhamos o exagero, mas temos de constatar que elas dominam pelo encanto todos aqueles que sabem perscrutar os seus segredos.
O estudo das matemáticas-diz Poincaré- proporciona prazeres análogos aos da música e da pintura. E porque assim é, encontramos, em todos os tempos, espíritos duma elevada intuição estética, sentindo a atração da ciência dos números e das formas.
No velho Egipto, são os admiráveis construtores das pirâmides de Gizeh que perpetuam a memória de uma civilização grandiosa, legando à posteridade, através desses belos monumentos, os conhecimentos geométricos da época.
Na antiga Grécia, vêm-se os sábios e os filósofos embebidos no estudo da Geometria que toma forma de ciência divina, a ponto que Thales de Mileto recebe como benefício da Providência a descoberta duma propriedade dos ângulos inscritos e sacrifica um boi aos seus deuses!
Pitágoras de Samos funda a seita dos pitagóricos, e na sua Escola os discípulos extasiam-se na descoberta dos teoremas de Geometria, como os Santos no conhecimento das verdades eternas. Tão grande é a sedução dos ensinamentos de Pitágoras, que a jovem e bela Teano, a mais linda mulher de Crotona, abraça as suas doutrinas, e, não contente, abraça-se também ao velho Mestre, desposando-o.
Platão, o divino filósofo, manifesta tal predileção pelas matemáticas puras que diz ser a Geometria “um método próprio de dirigir as almas para Deus”. E, querendo glorificar as harmonias da Natureza, tem esta síntese magnífica: “Deus geometriza eternamente”. Ninguém, melhor que os gregos, soube compreender e sentir o valor estético da Matemática.
Mais tarde, na Índia – a pátria do Ramayana e Mahabarata, e por isso, talvez a pátria da Poesia – surgem matemáticos que são poetas. Brahmagupta escreve, em versos mnemónicos, um tratado de astronomia; e Bhaskara – o sábio – compõe, carinhosamente uma obra dedicada à sua filha Lilavati, para a consolar dum desgosto de amor.
A título de curiosidade, vou ler a V.V. Exas um problema dessa obra, que foi traduzido, em verso, pelo meu colega e amigo Dr. Armando Cortes Rodrigues, a quem rendo, neste momento, os meus melhores agradecimentos.
Dum enxame de abelhas, a metade
Mais a raiz quadrada, iam sugando
As flores dum jardim. E volteando
Andavam, em alegre liberdade,
Oito noivos do todo. Mas, sozinha,
Uma abelha amorosa se quedava
Ouvindo o bem-amado que buscava,
A zumbir, outra flor pela tardinha.
Agora dize, amor, que eu não direi
Já de quantas abelhas te falei…
Pelo espírito delicado e gracioso deste problema podem V. Exas avaliar quanto não é obsoleto o preconceito vulgarizado pelo humorismo de Swift, e perfilhado por homens de mentalidade de Lamartine, de que a alma dos matemáticos é necessariamente árida e prosaica.
Mas voltemos à História.
No Ocidente, durante a Idade Média, são os árabes os detentores da Civilização e da Ciência. A finura característica da raça leva-os a dedicarem-se ao estudo das ciências exatas. E, ao princípio na Academia de Bagdad, mais tarde nas Escolas de Marrocos e Espanha, cultiva-se com entusiasmo o gosto das matemáticas.
Na Renascença, os pintores, escultores e arquitetos estudam na Geometria as leis da sua arte. Albert Durer escreve um tratado em que discute a perspetiva. E Andrea del Verrocchio, mestre e amigo de Leonardo da Vinci, considera a Matemática a base das ciências e das artes.
Leonardo da Vinci, expoente máximo da pintura italiana, busca, umas vezes na música outras nos cálculos, o calmante das grandes atribulações. Nos seus pensamentos confessa o prazer que lhe proporciona a Matemática, dizendo: - “Se a luz solar produz a maior alegria nos corpos, a clareza das verdades matemáticas produz a maior alegria nos espíritos”.
Na longa galeria dos matemáticos estetas não deve esquecer-nos no século XVII, descartes, que conseguiu exprimir em símbolos algébricos as figuras da Geometria, à semelhança dos escritores que traduzem em imagens literárias quadros da Natureza.
Nos tempos modernos, entre os génios que cultivaram a Matemática com requintes de artistas,podemos citar D’Alembert, que escreveu com emoção: “Les mathématiques ont été pour moi une maitresse”. Lagrange, que cuidava da elegância e simplicidade das suas fórmulas, como Flaubert do estilo das suas frases; e já nos fins do século XIX, Hermite, alma de sábio e crente, que esperava de Deus a revelação completa do mundo sublime das harmonias matemáticas.
Mas de todos os nomes que a História da Ciência nos apresenta não há nenhum que lembre tanto a paixão dos números como o de Sofia Corvino Kowalewsky, poetisa e literata, beleza peregrina de mulher, que se dedicou às altas matemáticas e amou-as até ao sacrifício.
Sofia Corvino, filha dum grande senhor da Rússia, fugiu de casa de seus pais, onde vivia na abundância, para passar a vida difícil numa cidade universitária da Alemanha, estudando a Matemática.
Nos seus trabalhos escolares viu-se obrigada a vencer obstáculos que pareceriam insuperáveis, se não tivesse a animá-la o inquebrantável culto pela ciência. E mais tarde, já quando professora de Cálculo na Universidade de Stockolmo, renunciou a um casamento de amor com o célebre explorador Nansen, porque não quis satisfazer as exigências do seu pretendente, renunciando ao estudo.
Nansen queria integro o amor de Sofia e ela amava também a Matemática…
***
Minhas Senhoras e meus Senhores
Em todos os tempos, disse eu no princípio, houve espíritos duma elevada intuição estética que sentiram a paixão das matemáticas.
- Porque é que a Matemática apaixona? - Perguntarão V.V. Exas.
- É porque nela se tem, como em nenhuma outra ciência, múltiplas ocasiões de admirar a grandeza do espírito humano, porque é altamente estética; porque conserva, na singeleza dos seus métodos ou na profundeza dos seus conceitos, o sentido do Belo, e finalmente, porque encerra em si os fundamentos da Arte.
O grande Leibniz afirma algures: “A Arte é a mais alta expressão duma aritmética interior e inconsciente.”
Com efeito, todas as manifestações de Arte vivem do número e da forma.
A pintura tem a sua Geometria no desenho e na perspetiva; a arquitetura e a escultura subordinam as leis da sua estética à proporção e simetria; a música, a poesia e a dança procuram no número (ou na medida, o que é a mesma coisa) o melhor dos seus atrativos- o ritmo.
Já Pitágoras notara as relações da Matemática com a Música, embora a sua teoria seja falha de valor científico. No século XVIII, porém, essas relações foram estudadas cuidadosamente pelo grande matemático Euler, num tratado, que, segundo a opinião dum crítico, pecava por conter demasiada matemática para ser lido pelos músicos, e demasiada música para ser lido pelos matemáticos.
Joseph de Maistre dá-nos sob uma forma literária, neste pequeno trecho que eu tomo a liberdade de traduzir para V.V. Exas, o pensamento de Leibniz, de que a Arte é uma alta expressão da aritmética:
“Eliminai o número, e tereis destruído as artes, as ciências, a palavra e, por consequência, a inteligência. Que o número reapareça: com ele virão as suas duas filhas celestes, a harmonia e a beleza; o grito tornar-se-á canto, o ruido terá o nome de ritmo, o salto será a dança, a força chamar-se-á dinâmica, e as linhas serão figuras”.
Eis o segredo do encanto das matemáticas: A Harmonia e a Beleza que se sentem no mundo das Artes são as mesmas que reinam no mundo dos números. Por isso, eu ouso afirmar que a Matemática é a própria essência da Arte.
***
Há quem tenha a impressão de que é preciso atingir os píncaros das altas matemáticas, para se ter o privilégio de gozar das suas belezas.
Não, meus Senhores. Nas planuras das matemáticas elementares que se estudam nos liceus, também há imensas oportunidades de conhecer os seus encantos.
Tudo depende da maneira de ensinar e aprender.
Pode-se ensinar materialmente, maquinalmente, sem dar significado aos números e às fórmulas, num ensino sem largueza, e elevação; ou então, pode-se penetrar o sentido e a ligação dos símbolos, das ideias e das cousas, descendo à fontes do conhecimento. Neste caso, quando a inteligência apreende a originalidade dos artifícios matemáticos, e a aplicação prática dos teoremas e cálculos, desperta num interesse vivo pela mais antiga e a mais perfeita de todas as ciências.
Cada ramo das matemáticas elementares tem os seus interesses característicos.
No estudo da Aritmética podem-se observar as curiosas relações dos números, tão curiosas e tão perfeitas que Frederico Gauss – o maior matemático alemão – dizia: “A Matemática é a rainha das ciências, e a Aritmética a rainha das matemáticas.”
Mundum regunt numeri, diziam os antigos, querendo significar que as relações dos números não eram mais do que o reflexo das relações das cousas. Atribuíam-lhes poderes ocultos de governo do mundo e propriedades místicas.
Tal foi a idolatria dos números que Platão, levado pelo exagero da sua imaginação fantasista, chegou a conceber o número nupcial- aquele que havia de influenciar as consequências do matrimónio!
São incompreensíveis bizantices, mas valem como prova da paixão que despertam os números.
Os números chegam a adquirir uma verdadeira personalidade aos olhos dos que lidam com eles. E na Aritmética aparecem, por isso, designações como a dos números amigos, primos entre si, perfeitos, abundantes e deficientes, exprimindo os laços de afinidade que os ligam aos outros ou as propriedades que os caracterizam.
É na Aritmética, principalmente, que se nota o espírito de ordem e proporção. Nos teoremas, nas séries dos números, nas operações, nas demonstrações -em tudo se admira a ordem e a proporção, ou numa palavra só, o método.
É também através da Aritmética que os homens têm pela primeira vez consciência de que raciocinam, quando acham o resultado das suas primeiras contas. E nessa ocasião, principiam a sentir o prazer incalculável … de calcular.
São as curiosas relações e propriedades dos números, o espírito de ordem e proporção, e o prazer do cálculo que tornam interessante e agradável o estudo da Aritmética.
***
A Álgebra elementar é uma linguagem simbólica, que tem na simplicidade toda a elegância do seu estilo. Cada equação é um trecho de prosa; as incógnitas valem por perguntas que têm como respostas as soluções.
Por um problema em equação é escrever em linguagem algébrica as condições duma questão apresentada em vernáculo. Resolver a equação é procurar a solução do problema: - e aqui está o mérito da língua.
O estilo que a Álgebra usa – se é possível estabelecer o paralelo- é o estilo ático, o que prima pela precisão e pela clareza. Daí todo o seu encanto.
Edgard Quinet, poeta e filósofo, que professou as matemáticas na Escola Politécnica de Paris, sentia-se tão surpreendido com a beleza da Álgebra que a considerava superior a todas as línguas humanas – a língua do Deus do espírito.
O cálculo algébrico tem sobre a aritmética a vantagem de ser mais simples, mais atraente e mais geral. É essa a razão por que a Álgebra, fazendo caminhar mais depressa, alarga os horizontes do campo dos números e desenvolve no homem o poder de abstração por abranger as verdades gerais, não se fixando em particularidades inúteis.
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De todos os ramos da Matemática elementar, é, sem dúvida, a Geometria, aquele que mais prazeres reserva aos estudiosos.
Na simples verificação duma propriedade ou na demonstração dum teorema, a gente miúda experimenta uma enorme satisfação: cada aluno é um pequenino Arquimedes descobrindo, constantemente, novos princípios e deduzindo novas consequências. Um conhecimento adquirido pelo próprio esforço ou uma verdade demonstrada pela lógica dum raciocínio infantil, dá-lhe o sentimento da sua personalidade intelectual. Se souber latim, dirá como Descartes: “Cogito, ergo sum.”
Na minha curta vida de professor tenho observado, muitas vezes o interesse que desperta a demonstração dum teorema de Geometria.
Ainda há pouco tempo reparei numa criança de catorze anos, que se tinha concentrado horas seguidas com o intuito de demonstrar uma simples propriedade dos ângulos. Quando o seu esforço foi coroado de êxito, uma alegria luminosa estampava-se-lhe no rosto, e no olhar transparecia-lhe o clarão do triunfo.
Imaginei então o que seria a comoção profunda de Isaac Newton, que sentiu esvaírem-se-lhe as forças, quando verificou serem matematicamente exatos os cálculos que o levaram à descoberta genial da lei da gravitação.
Mas não é só o prazer da descoberta que a Geometria oferece aos que estudam. Quem se compenetra do espírito lógico desta ciência aprecia a correlação estreita dos seus teoremas, ligados, caprichosamente, como as pedras duma catedral gótica, formando um
Edifício grandioso de linhas elegantes e sóbrias.
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Tanto nas matemáticas elementares como nas altas matemáticas se sente o encanto subtil da precisão dos métodos, da justeza dos conceitos e da simplicidade dos princípios.
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Minhas Senhoras e meus Senhores
Há nos liceus duas disciplinas que inspiram o terror aos alunos e fazem as delícias dos explicadores: - o Latim e a Matemática.
Falando a V.V. Exas do “encanto das matemáticas” tive a intenção, talvez veleidade, de contradizer a opinião corrente de que o mundo dos números é ávido e obscuro, eriçado de dificuldades e destituído de atrativos.
Meus caros alunos
Não sei se V.V. acreditam nos encantos que acabei de descrever.
Se não acreditaram, estudem a Matemática e verão que laboram num erro; e se acreditaram, estudem a Matemática para verem quanto ela encerra de Perfeição, de Harmonia e de Beleza.
Lúcio Miranda
(texto integral da oração de “sapientia” proferida na abertura solene das aulas do Liceu Central de Antero de Quental, publicada no jornal “Correio dos Açores”, de 8 de outubro de 1932)
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