quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O Dr. Lúcio de Miranda e o Encanto das Matemáticas





O Dr. Lúcio de Miranda e o Encanto das Matemáticas
Em homenagem ao Dr. Lúcio de Miranda
O Dr. Lúcio de Miranda (1904-1962), natural de Goa, foi um professor de matemática no Liceu de Ponta Delgada que, em 1954, fruto da pressão exercida por Salazar para que por todo o país as mais diversas entidades manifestassem o seu repúdio pelo movimento gandhista que pretendia libertar os territórios ocupados por Portugal na Índia, viu-se forçado a pedir a demissão de professor e a partir para Inglaterra, onde acabou por falecer em 1962.
Com a sua postura ética, o Dr. Lúcio Miranda marcou a vida cultural da ilha de São Miguel, tendo sido fundador e vice-presidente da Academia Musical de Ponta Delgada e criado o “Centro de Estudos de Matemática e Física do Liceu Nacional de Antero de Quental.
Portador de uma cultura muito vasta, o Dr. Lúcio Miranda era conferencista em várias sessões não só sobre temas diretamente relacionados com a sua formação universitária, a matemática, mas também sobre temas muito diversos, de que é exemplo uma conferência que proferiu na Academia Musical de Ponta Delgada, em 1948, intitulada “O Romance de Chopin” ou uma palestra radiofónica proferida em 1938 com o título “ Sábado Magro (variações sem tom…)”.
Dos vários textos da sua autoria, destacamos “Mahatma Gandhi- Perfil-Vida e Ação-Doutrina”, publicado na revista “Insulana”, volume IV, nº 1, de 1948 e “O encanto das Matemáticas”, publicado no Correio dos Açores, de 8 de outubro de 1932 e que pelo seu interesse e por não ter perdido atualidade, em sua homenagem, se transcreve na íntegra.
Teófilo Braga
O Encanto das Matemáticas
Desde a mais remota antiguidade todos os povos que conheceram a Civilização cultivaram as matemáticas – uns levados por necessidades de ordem prática, outros atraídos pelo prazer do espírito. E porque a Matemática “tem invenções subtis, que servem tanto para facilitar as indústrias como para contentar os curiosos”, os homens cedo compreenderam a sua utilidade e a sua beleza.
O meu tema não é a utilidade das matemáticas – é a beleza. Mas, de passagem, não quero deixar de me referira algumas das suas inúmeras aplicações.
- Na astronomia, é por meio dos cálculos que se prevê o movimento dos corpos celestes; na física, a matemática supre muitas vezes a experiência e abrevia o conhecimento dos resultados; nas finanças, ensina a calcular os juros, as anuidades e as rendas; na agrimensura, facilita os trabalhos topográficos; na engenharia, ajuda a determinar a resistência dos materiais; na navegação, orienta e guia os marinheiros; nas artes militares, resolve as questões do tiro…E não continuamos nesta ordem de ideias, porque só de matemáticas aplicadas existe um grosso dicionário, publicado por um erudito francês, depois de trinta anos de trabalho.
Podem V.V. Exas calcular como é útil ao homem o estudo da Matemática.
Porém, não é somente da utilidade que dimana todo o seu interesse. Ela encerra uma soma tão grande de Perfeição, de Harmonia e de Beleza, que Poisson afirmava: “A vida só é bela a estudar e a ensinar as matemáticas!”
Não lhe perfilhamos o exagero, mas temos de constatar que elas dominam pelo encanto todos aqueles que sabem perscrutar os seus segredos.
O estudo das matemáticas-diz Poincaré- proporciona prazeres análogos aos da música e da pintura. E porque assim é, encontramos, em todos os tempos, espíritos duma elevada intuição estética, sentindo a atração da ciência dos números e das formas.
No velho Egipto, são os admiráveis construtores das pirâmides de Gizeh que perpetuam a memória de uma civilização grandiosa, legando à posteridade, através desses belos monumentos, os conhecimentos geométricos da época.
Na antiga Grécia, vêm-se os sábios e os filósofos embebidos no estudo da Geometria que toma forma de ciência divina, a ponto que Thales de Mileto recebe como benefício da Providência a descoberta duma propriedade dos ângulos inscritos e sacrifica um boi aos seus deuses!
Pitágoras de Samos funda a seita dos pitagóricos, e na sua Escola os discípulos extasiam-se na descoberta dos teoremas de Geometria, como os Santos no conhecimento das verdades eternas. Tão grande é a sedução dos ensinamentos de Pitágoras, que a jovem e bela Teano, a mais linda mulher de Crotona, abraça as suas doutrinas, e, não contente, abraça-se também ao velho Mestre, desposando-o.
Platão, o divino filósofo, manifesta tal predileção pelas matemáticas puras que diz ser a Geometria “um método próprio de dirigir as almas para Deus”. E, querendo glorificar as harmonias da Natureza, tem esta síntese magnífica: “Deus geometriza eternamente”. Ninguém, melhor que os gregos, soube compreender e sentir o valor estético da Matemática.
Mais tarde, na Índia – a pátria do Ramayana e Mahabarata, e por isso, talvez a pátria da Poesia – surgem matemáticos que são poetas. Brahmagupta escreve, em versos mnemónicos, um tratado de astronomia; e Bhaskara – o sábio – compõe, carinhosamente uma obra dedicada à sua filha Lilavati, para a consolar dum desgosto de amor.
A título de curiosidade, vou ler a V.V. Exas um problema dessa obra, que foi traduzido, em verso, pelo meu colega e amigo Dr. Armando Cortes Rodrigues, a quem rendo, neste momento, os meus melhores agradecimentos.
Dum enxame de abelhas, a metade
Mais a raiz quadrada, iam sugando
As flores dum jardim. E volteando
Andavam, em alegre liberdade,
Oito noivos do todo. Mas, sozinha,
Uma abelha amorosa se quedava
Ouvindo o bem-amado que buscava,
A zumbir, outra flor pela tardinha.
Agora dize, amor, que eu não direi
Já de quantas abelhas te falei…
Pelo espírito delicado e gracioso deste problema podem V. Exas avaliar quanto não é obsoleto o preconceito vulgarizado pelo humorismo de Swift, e perfilhado por homens de mentalidade de Lamartine, de que a alma dos matemáticos é necessariamente árida e prosaica.
Mas voltemos à História.
No Ocidente, durante a Idade Média, são os árabes os detentores da Civilização e da Ciência. A finura característica da raça leva-os a dedicarem-se ao estudo das ciências exatas. E, ao princípio na Academia de Bagdad, mais tarde nas Escolas de Marrocos e Espanha, cultiva-se com entusiasmo o gosto das matemáticas.
Na Renascença, os pintores, escultores e arquitetos estudam na Geometria as leis da sua arte. Albert Durer escreve um tratado em que discute a perspetiva. E Andrea del Verrocchio, mestre e amigo de Leonardo da Vinci, considera a Matemática a base das ciências e das artes.
Leonardo da Vinci, expoente máximo da pintura italiana, busca, umas vezes na música outras nos cálculos, o calmante das grandes atribulações. Nos seus pensamentos confessa o prazer que lhe proporciona a Matemática, dizendo: - “Se a luz solar produz a maior alegria nos corpos, a clareza das verdades matemáticas produz a maior alegria nos espíritos”.
Na longa galeria dos matemáticos estetas não deve esquecer-nos no século XVII, descartes, que conseguiu exprimir em símbolos algébricos as figuras da Geometria, à semelhança dos escritores que traduzem em imagens literárias quadros da Natureza.
Nos tempos modernos, entre os génios que cultivaram a Matemática com requintes de artistas,podemos citar D’Alembert, que escreveu com emoção: “Les mathématiques ont été pour moi une maitresse”. Lagrange, que cuidava da elegância e simplicidade das suas fórmulas, como Flaubert do estilo das suas frases; e já nos fins do século XIX, Hermite, alma de sábio e crente, que esperava de Deus a revelação completa do mundo sublime das harmonias matemáticas.
Mas de todos os nomes que a História da Ciência nos apresenta não há nenhum que lembre tanto a paixão dos números como o de Sofia Corvino Kowalewsky, poetisa e literata, beleza peregrina de mulher, que se dedicou às altas matemáticas e amou-as até ao sacrifício.
Sofia Corvino, filha dum grande senhor da Rússia, fugiu de casa de seus pais, onde vivia na abundância, para passar a vida difícil numa cidade universitária da Alemanha, estudando a Matemática.
Nos seus trabalhos escolares viu-se obrigada a vencer obstáculos que pareceriam insuperáveis, se não tivesse a animá-la o inquebrantável culto pela ciência. E mais tarde, já quando professora de Cálculo na Universidade de Stockolmo, renunciou a um casamento de amor com o célebre explorador Nansen, porque não quis satisfazer as exigências do seu pretendente, renunciando ao estudo.
Nansen queria integro o amor de Sofia e ela amava também a Matemática…
***
Minhas Senhoras e meus Senhores
Em todos os tempos, disse eu no princípio, houve espíritos duma elevada intuição estética que sentiram a paixão das matemáticas.
- Porque é que a Matemática apaixona? - Perguntarão V.V. Exas.
- É porque nela se tem, como em nenhuma outra ciência, múltiplas ocasiões de admirar a grandeza do espírito humano, porque é altamente estética; porque conserva, na singeleza dos seus métodos ou na profundeza dos seus conceitos, o sentido do Belo, e finalmente, porque encerra em si os fundamentos da Arte.
O grande Leibniz afirma algures: “A Arte é a mais alta expressão duma aritmética interior e inconsciente.”
Com efeito, todas as manifestações de Arte vivem do número e da forma.
A pintura tem a sua Geometria no desenho e na perspetiva; a arquitetura e a escultura subordinam as leis da sua estética à proporção e simetria; a música, a poesia e a dança procuram no número (ou na medida, o que é a mesma coisa) o melhor dos seus atrativos- o ritmo.
Já Pitágoras notara as relações da Matemática com a Música, embora a sua teoria seja falha de valor científico. No século XVIII, porém, essas relações foram estudadas cuidadosamente pelo grande matemático Euler, num tratado, que, segundo a opinião dum crítico, pecava por conter demasiada matemática para ser lido pelos músicos, e demasiada música para ser lido pelos matemáticos.
Joseph de Maistre dá-nos sob uma forma literária, neste pequeno trecho que eu tomo a liberdade de traduzir para V.V. Exas, o pensamento de Leibniz, de que a Arte é uma alta expressão da aritmética:
“Eliminai o número, e tereis destruído as artes, as ciências, a palavra e, por consequência, a inteligência. Que o número reapareça: com ele virão as suas duas filhas celestes, a harmonia e a beleza; o grito tornar-se-á canto, o ruido terá o nome de ritmo, o salto será a dança, a força chamar-se-á dinâmica, e as linhas serão figuras”.
Eis o segredo do encanto das matemáticas: A Harmonia e a Beleza que se sentem no mundo das Artes são as mesmas que reinam no mundo dos números. Por isso, eu ouso afirmar que a Matemática é a própria essência da Arte.
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Há quem tenha a impressão de que é preciso atingir os píncaros das altas matemáticas, para se ter o privilégio de gozar das suas belezas.
Não, meus Senhores. Nas planuras das matemáticas elementares que se estudam nos liceus, também há imensas oportunidades de conhecer os seus encantos.
Tudo depende da maneira de ensinar e aprender.
Pode-se ensinar materialmente, maquinalmente, sem dar significado aos números e às fórmulas, num ensino sem largueza, e elevação; ou então, pode-se penetrar o sentido e a ligação dos símbolos, das ideias e das cousas, descendo à fontes do conhecimento. Neste caso, quando a inteligência apreende a originalidade dos artifícios matemáticos, e a aplicação prática dos teoremas e cálculos, desperta num interesse vivo pela mais antiga e a mais perfeita de todas as ciências.
Cada ramo das matemáticas elementares tem os seus interesses característicos.
No estudo da Aritmética podem-se observar as curiosas relações dos números, tão curiosas e tão perfeitas que Frederico Gauss – o maior matemático alemão – dizia: “A Matemática é a rainha das ciências, e a Aritmética a rainha das matemáticas.”
Mundum regunt numeri, diziam os antigos, querendo significar que as relações dos números não eram mais do que o reflexo das relações das cousas. Atribuíam-lhes poderes ocultos de governo do mundo e propriedades místicas.
Tal foi a idolatria dos números que Platão, levado pelo exagero da sua imaginação fantasista, chegou a conceber o número nupcial- aquele que havia de influenciar as consequências do matrimónio!
São incompreensíveis bizantices, mas valem como prova da paixão que despertam os números.
Os números chegam a adquirir uma verdadeira personalidade aos olhos dos que lidam com eles. E na Aritmética aparecem, por isso, designações como a dos números amigos, primos entre si, perfeitos, abundantes e deficientes, exprimindo os laços de afinidade que os ligam aos outros ou as propriedades que os caracterizam.
É na Aritmética, principalmente, que se nota o espírito de ordem e proporção. Nos teoremas, nas séries dos números, nas operações, nas demonstrações -em tudo se admira a ordem e a proporção, ou numa palavra só, o método.
É também através da Aritmética que os homens têm pela primeira vez consciência de que raciocinam, quando acham o resultado das suas primeiras contas. E nessa ocasião, principiam a sentir o prazer incalculável … de calcular.
São as curiosas relações e propriedades dos números, o espírito de ordem e proporção, e o prazer do cálculo que tornam interessante e agradável o estudo da Aritmética.
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A Álgebra elementar é uma linguagem simbólica, que tem na simplicidade toda a elegância do seu estilo. Cada equação é um trecho de prosa; as incógnitas valem por perguntas que têm como respostas as soluções.
Por um problema em equação é escrever em linguagem algébrica as condições duma questão apresentada em vernáculo. Resolver a equação é procurar a solução do problema: - e aqui está o mérito da língua.
O estilo que a Álgebra usa – se é possível estabelecer o paralelo- é o estilo ático, o que prima pela precisão e pela clareza. Daí todo o seu encanto.
Edgard Quinet, poeta e filósofo, que professou as matemáticas na Escola Politécnica de Paris, sentia-se tão surpreendido com a beleza da Álgebra que a considerava superior a todas as línguas humanas – a língua do Deus do espírito.
O cálculo algébrico tem sobre a aritmética a vantagem de ser mais simples, mais atraente e mais geral. É essa a razão por que a Álgebra, fazendo caminhar mais depressa, alarga os horizontes do campo dos números e desenvolve no homem o poder de abstração por abranger as verdades gerais, não se fixando em particularidades inúteis.
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De todos os ramos da Matemática elementar, é, sem dúvida, a Geometria, aquele que mais prazeres reserva aos estudiosos.
Na simples verificação duma propriedade ou na demonstração dum teorema, a gente miúda experimenta uma enorme satisfação: cada aluno é um pequenino Arquimedes descobrindo, constantemente, novos princípios e deduzindo novas consequências. Um conhecimento adquirido pelo próprio esforço ou uma verdade demonstrada pela lógica dum raciocínio infantil, dá-lhe o sentimento da sua personalidade intelectual. Se souber latim, dirá como Descartes: “Cogito, ergo sum.”
Na minha curta vida de professor tenho observado, muitas vezes o interesse que desperta a demonstração dum teorema de Geometria.
Ainda há pouco tempo reparei numa criança de catorze anos, que se tinha concentrado horas seguidas com o intuito de demonstrar uma simples propriedade dos ângulos. Quando o seu esforço foi coroado de êxito, uma alegria luminosa estampava-se-lhe no rosto, e no olhar transparecia-lhe o clarão do triunfo.
Imaginei então o que seria a comoção profunda de Isaac Newton, que sentiu esvaírem-se-lhe as forças, quando verificou serem matematicamente exatos os cálculos que o levaram à descoberta genial da lei da gravitação.
Mas não é só o prazer da descoberta que a Geometria oferece aos que estudam. Quem se compenetra do espírito lógico desta ciência aprecia a correlação estreita dos seus teoremas, ligados, caprichosamente, como as pedras duma catedral gótica, formando um
Edifício grandioso de linhas elegantes e sóbrias.
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Tanto nas matemáticas elementares como nas altas matemáticas se sente o encanto subtil da precisão dos métodos, da justeza dos conceitos e da simplicidade dos princípios.
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Minhas Senhoras e meus Senhores
Há nos liceus duas disciplinas que inspiram o terror aos alunos e fazem as delícias dos explicadores: - o Latim e a Matemática.
Falando a V.V. Exas do “encanto das matemáticas” tive a intenção, talvez veleidade, de contradizer a opinião corrente de que o mundo dos números é ávido e obscuro, eriçado de dificuldades e destituído de atrativos.
Meus caros alunos
Não sei se V.V. acreditam nos encantos que acabei de descrever.
Se não acreditaram, estudem a Matemática e verão que laboram num erro; e se acreditaram, estudem a Matemática para verem quanto ela encerra de Perfeição, de Harmonia e de Beleza.
Lúcio Miranda
(texto integral da oração de “sapientia” proferida na abertura solene das aulas do Liceu Central de Antero de Quental, publicada no jornal “Correio dos Açores”, de 8 de outubro de 1932)
Contacto da revista: jope103@hotmail.com

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