terça-feira, 31 de outubro de 2017

Educar de outra maneira: O MEM e a Escola da Ponte


Educar de outra maneira: O MEM e a Escola da Ponte

“…Isso prova que o homem mais bem dotado pela natureza só recebe faculdades, mas essas faculdades permanecem mortas se não forem fertilizadas pela ação benfazeja e poderosa da coletividade. Diremos mais. Quanto mais o homem é beneficiado pela natureza, mais ele apreende da coletividade; disso resulta que mais ele deverá devolver-lhe, com toda justiça.” (Mikhail Bakunin)
Um texto intitulado “Sempre a aprender”, publicado na revista “Máxima”, de setembro de 2017, leva o leitor a fazer um rápido percurso por diversas “escolas que ensinam diferente”, como as Escolas João de Deus, que tem como modelo de ensino a Cartilha Maternal, a Escola da Ponte, que possui um modelo criado por José Pacheco, a Voz do Operário, que recorre às teorias socioconstrutivistas, Os Aprendizes, inspirada na metodologia High Scope, na pedagogia Waldorf, etc.

Entre nós, nos últimos anos, um grupo ainda não muito grande de professores e educadores, dos poucos que ainda estão vivos nas escolas, tem frequentado ações de formação relacionadas com o projeto pedagógico da Escola da Ponte e com o Movimento da Escola Moderna, o mais importante movimento pedagógico português, segundo António Nóvoa.

A Escola da Ponte é uma escola pública criada por José Pacheco em 1976, infelizmente mais conhecida no estrangeiro do que em Portugal, e o Movimento da Escola Moderna surgido “a partir da atividade de seis professores que se constituíram, em fevereiro de 1965, num Grupo de Trabalho de Promoção Pedagógica impulsionado pelos cursos de aperfeiçoamento profissional de professores que Rui Grácio promoveu e dirigiu no Sindicato Nacional de Professores”, tem como principal mentor o pedagogo Sérgio Niza.

Na ilha de São Miguel há um grupo de professores que de algum modo tem ligação com a Escola da Ponte, estando a desenvolver esforços para a criação de uma escola inspirada naquela e há outro grupo que está a fazer a sua autoformação cooperada no Movimento da Escola Moderna que organiza mensalmente “sábados pedagógicos”, abertos a todos os professores e educadores interessados.

Talvez por haver pessoas que estão envolvidas em ambas as iniciativas, há por vezes alguma confusão entre a experiência pedagógica portuguesa mais conhecida, a Escola da Ponte e o Movimento da Escola Moderna. A título de exemplo, refiro a pergunta que me foi feita recentemente: a escola não abre, então por que razão continua a formação que vocês não param de fazer?

Outra questão que tem surgido é se o Movimento da Escola Moderna é uma organização que se limita a usar as técnicas do pedagogo francês Célestin Freinet?

Começando por responder a esta última questão, Sérgio Niza, em 1997, numa entrevista à revista Noésis, afirmou o seguinte: “Não partimos como Freinet da ideia de construir um modelo escolar, mas sim de nos formarmos como professores e dessa forma irmos fazendo avançar as nossas práticas. […] Isso não impede que ainda hoje utilizemos algumas técnicas Freinet, porque, em boa verdade, as técnicas Freinet não eram dele. Foram técnicas que estavam disponíveis e a que deu novo sentido”.

Em relação às diferenças entre o MEM e a Escola da Ponte, Sérgio Niza, numa entrevista concedida a Júlio Aquino, da Universidade de São Paulo, publicada, em 2013, na revista “Educação e Pesquisa”, disse que “a Escola da Ponte manteve-se numa aproximação a muitas coisas que são da Escola Nova, mesmo na sua estrutura, nas grandes assembleias de alunos, uma grande individualização do trabalho dos alunos, quase mesmo uma aprendizagem individual.”

Ainda sobre a Escola da Ponte e sobre as diferenças em relação ao MEM, Sérgio Niza afirmou: “Se aprofundassem o modelo de trabalho deles, iriam descobrir que se mantinham ligados a uma espécie de pedocentrismo centrado nos planos curriculares individuais das crianças, o que conflitua com uma forte dimensão cooperada de entreajuda que funda as nossas práticas de comunidades de aprendizagem”.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31370, 1 de novembro de 2017, p.8)

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O Autonómico e os animais


O Autonómico e os animais

O semanário “O Autonómico”, que se publicou em Vila Franca do Campo entre 1989 e 1943 e que teve como primeiro redator J. Castro de Lemos e editor António Rodrigues Carroça Júnior, ao longo da sua existência foi porta-voz dos defensores dos animais.

De entre os textos publicados, no dia 28 de junho de 1919, o jornal “O Autonómico”, na sua primeira página, publicou um longo artigo intitulado “Proteção aos irracionais” que apesar de ter quase um século de existência ainda mantém alguma atualidade, o que prova que a evolução científica e tecnológica não foi acompanhada pelo aperfeiçoamento moral.

Depois de referir o reconhecimento pelos animais constante no “Oriente pagão”, no “código moral dos hebreus” ou no cristianismo, o autor considera que é “pobre de sensibilidade moral” quem pensa que o animal é “uma simples coisa que, como tal, é destituída de sensibilidade.”

O autor considera que “o animal não é mero autómato, nem obedece apenas a funções mecânicas”, acrescenta que “os animais têm uma vida própria, cujos principais atributos são a sensibilidade, motricidade e certo grau de inteligência, relacionando-se uns com os outros” e interroga-se: “A amizade, gratidão e dedicação que em levantado grau muitos animais nos consagram; a nostalgia, a fidelidade e o sentimento da saudade, que não raro os faz morrer, não serão fenómenos afetivos que excluem toda a ideia de simples automatismo?”.

Tal como denunciou o autor do artigo que vimos citando, apesar das leis que foram surgindo ao longo dos tempos, a sua fiscalização ou não existe ou é insuficiente e a situação dos animais continua a envergonhar todos os humanos de bom coração.

Uma via para contribuir para melhorar a vida dos animais será através de “ensinamentos de piedade e amor fraterno para com os nossos semelhantes”. Segundo o autor “essa doce missão d’amor, carinho e sadia moral incumbe …aos padres, aos mestres, aos pais, às mães que cônscios dos seus deveres possuem o segredo infalível de bem formar os corações das crianças”.


Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31369, 31 de outubro de 2017, p. 16)

terça-feira, 24 de outubro de 2017

A desilusão com o Mundo de António Augusto Riley da Mota



A desilusão com o Mundo de António Augusto Riley da Mota


“Creio que o que há de mais essencial no ensino é despertar o interesse do estudante, e isso é relativamente fácil em ciências naturais e físicas – basta tornar o ensino objetivo com observação e experiência” (A.A, Riley da Mota)

Antes de fazermos referência ao episódio que terá estado na origem da demissão do Dr. António Augusto Riley da Mota de Diretor Geral do Ensino Secundário, logo seguida da sua aposentação, a seu pedido, fazemos uma breve apresentação de um homem que em alguns aspetos, esteve e talvez estaria hoje, se fosse vivo, muito à frente do seu tempo.

O Dr. António Augusto Riley da Mota, filho do Eng. Dinis Moreira da Mota, natural do Pico da Pedra, nasceu em Ponta Delgada em 1893 e faleceu, com 74 anos de idade, na mesma cidade no dia 17 de abril de 1967.

Frequentou o liceu de Ponta Delgada entre 1905 e 1910, tendo terminado o curso liceal com a classificação de vinte valores. Em 1917, terminou o curso de Físico- Químicas na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra com a nota final de 19 valores e com idêntica classificação fez o Exame de Estado, no ano seguinte, na Escola Normal Superior.

Antes de chegar ao Ministério da Educação, foi professor efetivo, durante um ano, no Liceu de Angra do Heroísmo, tendo no ano seguinte ocupado uma vaga no Liceu de Ponta Delgada, onde chegou ao cargo de reitor, em janeiro de 1936.

António Augusto Riley da Mota, em 1940 rumou a Lisboa onde a convite do Ministro da Educação foi nomeado Diretor Geral do Ensino Liceal, cargo que assumiu até 1946, ano em que, segundo Áurea Adão e Maria José Remédios autoras de um artigo intitulado “Memória para a frente, e…o resto é lotaria dos exames. A reforma do ensino liceal em 1947”, publicado na Revista Lusófona de Educação, em 2008, a 16 de março meteu uma licença por doença de 60 dias e passou “à inactividade a partir de 11 de Maio desse mesmo ano, “data em que foi julgado incapaz pela Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações””.

No âmbito das suas funções como Diretor Geral do Ensino Liceal, ao serviço do Estado Novo, o Dr. António Augusto Riley da Mota deu cumprimento à decisão do Ministro da Educação, António Faria de Carneiro Pacheco, que ordenou a colocação obrigatória de crucifixos nos liceus, ação que, segundo Paula Borges Santos, “inscrevia-se no âmbito da refor¬ma do ensino liceal, que permitira aí introduzir o ensino da moral cristã”, através do envio de circulares aos reitores. De acordo com a autora referida, a circular detalhava o que devia ser feito, como a realização da “cerimónia «na sala da reitoria, pelo menos na presença de todos os professores e de todos os chefes de turma»; quando não fosse possível usar a reitoria, utilizar outra sala, «devendo, porém, ficar depois colocada na reitoria o crucifixo»”.

Mas, enquanto o Dr. A.A, Riley da Mota se limitou a fazer cumprir decisões dos seus superiores para o regime estava tudo bem. Contudo, ele foi um eterno descontente com a falta de condições dos estabelecimentos de ensino, com os “excessos dos programas” e com o imobilismo reinante, pelo que a sua passagem pela Direção Geral do Ensino Liceal, segundo o Doutor José de Almeida Pavão, constituiu “uma das suas tarefas mais tormentosas”.

Ainda segundo o Doutor Almeida Pavão, o pedido de aposentação do Dr. Riley Mota deveu-se a “um desentendimento com o Ministro, por uma questão ridícula, em face da visão manifestamente retrógrada do responsável da respetiva pasta, acrescida de melindres de competências”.

Qual terá sido a “questão ridícula” e os “melindres de competências” referidos pelo Doutor Pavão?

A 11 de outubro de 1944 foi nomeada uma Comissão de Reforma do Ensino Liceal (CREL), presidida pelo Dr. António Augusto Riley da Motta que no final do ano seguinte endereçou um inquérito a todos os reitores onde questionava se deveria haver um plano de estudos diferentes para rapazes e raparigas, se devia existir ou não coeducação e sobre a formação dos professores e das professoras e sobre os seus vencimentos.

A discussão daquelas questões veio para a praça pública, nomeadamente para os jornais e o Ministério da Educação acabou por esclarecer que não pretendia alterar nada relativamente à “coeducação dos sexos” e, ainda segundo Áurea Adão e Maria José Remédios, o ministro afirmou que não havia autorizado “a realização de qualquer inquérito sobre este assunto” e informou que “se alguém com maior ou menor responsabilidades oficiais se quis sobrepor à competência do ministro da Educação Nacional, não temos dúvidas de que lhe serão tomadas contas”.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31364, 25 de outubro de 2017, p.17)

Louise Michel e os animais


Louise Michel e os animais

Em Janeiro de 2016, neste jornal, publiquei um texto sobre a revolucionária francesa Louise Michel (1830-905) que foi professora, poetisa e escritora e uma das principais militantes da Comuna de Paris.

Mulher corajosa, durante o movimento que levou ao poder os proletários franceses fez um pouco de tudo, desde enfermeira e condutora de ambulâncias até comandante de um batalhão feminino. A propósito da participação das mulheres nos combates escreveu: “Os nossos amigos homens são mais atreitos a desfalecimentos de coragem que nós, as mulheres. Durante a Semana Sangrenta, foram as mulheres que levantaram e defenderam a barricada da Place Blanche e mantiveram-na até à morte”.

Louise Michel foi uma mulher que abraçou a causa da luta por melhores condições de vida para todos os humanos, sendo capaz de se despojar dos seus bens para dar aos mais necessitados e que “amava a revolução com entusiasmo, como fanatismo cego, não por amor de si, mas dos operários e da paz do universo”.

Ao contrário do que por vezes se diz, a dedicação a determinada causa, por exemplo à defesa dos animais, não implica não estar de braços abertos para abraçar outras como a defesa dos humanos menos protegidos ou marginalizados pela sociedade injusta em que vivemos.

Louise Michel foi um exemplo de quem se dedicou ao próximo não esquecendo os animais. Sobre o assunto escreveu: …Os meus gatos estão em todo o lado: junto à lareira, na minha cama, no meu estojo de costura, deitados nas teclas do meu velho piano de nogueira. Não cheiram lá muito bem, eu sei, e disso se queixam os meus amigos. Tanto mais que também tenho um cão que nem sempre tenho tempo de levar a passear. É mais forte que eu, a vontade de recolher esses pobres bichos que alguém queria afogar…”


Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31363, 24 de outubro de 2017, p. 16)

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Alcanaitra e Alcoentre: Nem Ramiro III, nem Afonso Henriques. Prefiro o Derito


Alcanaitra e Alcoentre: Nem Ramiro III, nem Afonso Henriques. Prefiro o Derito

Ler para mim é uma obrigação profissional mas também é um prazer, sobretudo quando leio para ocupar o meu tempo livre ou quando leio para conhecer mais o mundo que me rodeia.
Se é verdade que leio de tudo um pouco, não é menos verdade que tenho uma predileção especial por ler biografias e memórias não só de chamadas personalidades que de algum modo se distinguiram a nível nacional ou internacional, mas também do denominado cidadão comum.
Neste momento estou a ler uma biografia de Marie Sklodowska Curie, a primeira mulher a receber um prémio Nobel e a primeira pessoa a ser galardoada com dois prémios Nobel e li há pouco tempo o livro “Alcanaitra e Alcoentre: Nem Ramiro III, nem Afonso Henriques. Prefiro o Derito” da autoria de Jorge M. Colaço, um colaborador d’ “A Batalha”, antigo órgão da Confederação Geral do Trabalho, jornal onde colaboraram vários açorianos, como Adriano Botelho, Jaime Brasil, Vitorino Nemésio e Aurélio Quintanilha e cofundador da Cooperativa Editora "Sementeira", em 1977, e membro da Direção/Administração da mesma entre 1988 e 1991.
Jorge Colaço, que tive o prazer de conversar no passado mês de agosto, era um nome que me era familiar pois foi diretor da revista Singularidades, uma publicação que assinei e que enquanto foi publicada deu uma “atenção crítica aos horrores da guerra, ao urbanismo desumano, às perseguições de todo o tipo, à desinformação massificada e alienante, à droga e seus negócios, às injustiças, às discriminações”. Para além do mencionado a revista apostou, também, “na divulgação de formas de vida e de modos de pensar alternativos e inconformistas; da política à poesia, da arquitetura às tecnologias alternativas, do cinema ao circo, da música à religião”.
O livro “Alcanaitra e Alcoentre: Nem Ramiro III, nem Afonso Henriques. Prefiro o Derito”, que daremos a conhecer, em parte, ao leitor, é o primeiro de Jorge M. Colaço, que segundo um texto publicado no jornal “A Batalha”, de Março/Abril de 2017, “trilhou um caminho muito próprio no anarquismo português: da participação activa na FARP-FAI a um libertarismo de cariz não-violento” que tem como referência principal Barthélémy De Ligt (1883-1938), pacifista antimilitarista libertário holandês que primeiro foi um pacifista cristão, tendo evoluído para o socialismo libertário”.
O autor que fez na vida um pouco de (quase) tudo, desde vindimador, escriturário, servente de copa, medidor orçamentista, moço de recados, empregado de mesa num restaurante, distribuidor de publicidade em caixas de correio, estagiário numa quinta de agricultura biológica, etc., no seu livro retrata uma variedade de situações não só relacionadas com a sua atividade profissional mas também com a sua militância cívica e política.
De leitura muito agradável para quem como eu devora biografias e memórias, o livro é também recomendado para quem aprecia poesia, pois no mesmo também há espaço para ela. Segundo o autor, a veia poética é uma herança de seu pai, a quem dedica o primeiro poema, de que deixamos aqui um pequeno extrato:
De ti, mal ou bem
herdei teus poemas
herdei o teu ritmo
herdei a tua mansidão
herdei a tua propensão para a paz

No livro, entre outros assuntos, Jorge M. Colaço recorda um jogo de futebol onde não havia adversários, o trabalho duro nas vindimas, em França, a detenção pela polícia política espanhola, que supôs que o autor e os seus companheiros de viagem andavam a espalhar propaganda contra o franquismo, a sua participação numa plantação de pinheiros e castanheiros em condições climatéricas bastante adversas, um discurso que fez no sétimo aniversário da “Modos de Ser – Associação Livre”, onde recordou que nela “não há politiquices, isto é, não há políticos profissionais mas, felizmente, há ideais, e o mais evidente de todos é o de defender e lutar pelo avanço da Liberdade, pela Justiça, pelo Pão, pela Fraternidade, pela Igualdade, pela Paz” e a homenagem que foi feita ao seu amigo José de Sousa Ramos, Professor Associado do Instituto Superior Técnico que contou com a presença do terceirense e amigo comum, Dimas Simas Lopes, médico, pintor, escultor e escritor, que para além de orador na cerimónia foi o autor da escultura inaugurada naquele dia.
Termino, referindo que Jorge M. Colaço também menciona no seu livro que foi bolseiro do projeto “Movimento Social Crítico e Alternativo: Memória e Referências” cujo objetivo foi a criação de um Portal na Internet baseado no “Arquivo Histórico – Social”, depositado na Biblioteca Nacional, que reúne espólios de antigos militantes sindicalistas e libertários, bem como das suas organizações específicas, sindicais e culturais.
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31358, 18 de outubro de 2017, p. 16)

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Paula Cabral e os animais



Paula Cabral e os animais

A picopedrense Paula Cabral, professora de Língua Portuguesa na Escola Secundária Antero de Quental, publicou recentemente um livrinho intitulado “Crónicas da minha terra” que merece a máxima divulgação, não só pela sua qualidade literária, que é reconhecida pelos entendidos, mas também pela sensibilidade demonstrada pela autora perante os problemas das sociedades atuais.

De entre os vários textos publicados, chamou-me a atenção o intitulado “Versos que ficaram por dizer”, onde a autora relata a história do senhor José Duarte que aos 80 anos fugiu do Lar de Vila Franca para ir para a sua terra natal. Ao ler o texto referido lembrei-me de meu avô Manuel Soares que durante alguns anos ia da Ribeira Seca de Vila Franca do Campo, com vacas, passar o inverno para o Pico da Pedra. Segundo ele, no Pico da Pedra tudo era melhor, as melancias eram mais doces e até as vacas pesavam mais.

Embora não tenha ficado surpreendido com o teor do texto “A mais genuína forma de afeição”, pois já vimos a autora tomar publicamente posição contra algumas formas de agravamento da tortura animal que alguns queriam legalizar nos Açores, aconselho a sua leitura que devia ser obrigatória para quem, miúdos ou graúdos, anda a precisar de aulas de educação cívica.

Não podia terminar este texto sem antes citar algumas passagens do texto referido:

“…Um animal em casa é como ter uma lareira que aconchega, é uma vida que lhe dá calor e que a preenche. Ser dono de um animal é uma condição, uma marca de idiossincrasia, julgando-se o carácter da pessoa pela generosidade que põe nesta relação altruísta, sem os jogos de interesses que minam as relações humanas.”

“…Sempre que lhes dispensarmos atenção e carinho, os mais pesados sentimentos do quotidiano dissipam-se nesta visita à mais pueril forma de afeição. Talvez a forma mais próxima da busca de tranquilidade espiritual que se pode experimentar quotidianamente.

Amar um animal é mesmo uma forma de depurar a nossa humanidade.”

O livrinho, que só o é pelo tamanho e número de páginas, é uma grande obra que li de um só folego e recomendo. Os meus parabéns à autora.


Teófilo Braga

Correio dos Açores, 31357, 17 de outubro de 2017, p. 10

terça-feira, 10 de outubro de 2017



Manuel Soares e o seu tempo (3)

Meu avô, Manuel Soares, sempre foi lavrador, isto é criador de gado bovino e como complemento dedicava-se à agricultura, sobretudo ao cultivo de milho, para fabrico de pão que era preparado por minha avó, Maria dos Santos Verdadeiro, e para consumo dos animais, galinhas, porcos e cavalos/éguas.

Em 1950, meu avô era portador de um Boletim de Sanidade, passado pela Delegação de Saúde de Vila Franca do Campo, com o número 49, onde estava indicada como sua profissão a de “Abastecedor e vendedor de leite”.

Estávamos longe dos bons períodos para os produtores de leite, em que o mesmo era vendido, a preço razoável às indústrias de laticínios. Com efeito, o leite que meu avô extraía das vacas era na sua maioria vendido numa mercearia em Vila Franca do Campo e acontecia muitas vezes que o mesmo não tinha compradores pelo que era devolvido e usado para alimentar o porco.

A crise da lavoura não acontecia apenas em Vila Franca. De acordo com o jornal Correio dos Açores, a 10 de maio de 1950, o Grémio da Lavoura reuniu-se com uma delegação de lavradores, tendo numa “Nota Oficiosa”, assinada por João Luís Pacheco da Câmara, decidido, por unanimidade, manter “o preço actual de 1$80 por litro, para venda de leite ao Público, visto haver sido considerado que qualquer baixa, neste momento, agravaria ainda mais a já precária situação da Lavoura”.

Sobre o cultivo de milho, de acordo com o Manifesto nº 540, da Comissão Reguladora dos Cereais do Arquipélago dos Açores, no ano de 1964 e 1965, em 7 alqueires de terra, situados na Quebrada e na Lomba da Cevada, foram produzidos 200 alqueires de milho amarelo e 80 alqueires de milho branco.

Não me recordo de minha avó fazer pão de milho amarelo que tinha um sabor diferente do branco e que apreciava muito. Só o comia quando ia a casa da minha tia Esméria Soares, a irmã mais nova de meu avô, que morava na rua da Palmeira, na Ribeira Seca, e que emigrou para os Estados Unidos da América, onde viveu na cidade de Bristol.

Nos últimos anos em que meu avô cultivou milho o transporte era feito através de um veículo motorizado, mas ainda me lembro do mesmo ser feito num carro de bois que meu avô possuía, sendo o mesmo puxado por dois bois “vermelhos”, possivelmente da raça Ramo Grande que também eram usados em trabalhos agrícolas, como lavrar e gradar as terras.

Foi a meados da década de 60 que chegou a casa de meu avô o primeiro aparelho de rádio, comprado pelos meus pais. Para ele a rádio não era bem-vinda e sobretudo incompreensível quando se tratava de relatos futebol que ele nunca terá visto ao vivo.

Mas como não há mal que nunca acaba, um dia a situação alterou-se, pelo menos parcialmente. Tal ocorreu quando, por mero acaso, ele ouviu umas quadras proferidas pelo Dr. Francisco Carreiro da Costa numa das suas palestras radiofónicas proferidas no Emissor Regional dos Açores, entre abril de 1945 e maio de 1974. A partir daí, semanalmente, meu avô tornou-se um ouvinte assíduo daquele programa naquela estação de rádio.

Com cerca de 90 anos meu avô ainda tratava de uns gueixos, tendo sido atacado por um deles e ficado ferido com alguma gravidade pelo que teve que ser visto por um médico, o que até então nunca tinha acontecido.

Como ele se recusava a ir ao hospital, a solução encontrada foi fazer um médico ir lá a casa para fazer uma primeira observação. Para o efeito foi um sobrinho seu que era veterinário que o foi visitar acompanhado de uma médica que lhe foi apresentada como veterinária amiga. Esta detetou que ele poderia ter algo partido e recomendou-lhe a sua deslocação ao hospital para fazer radiografias. Como resultado detetou-se que ele tinha costelas partidas recentemente e outras já soldadas que havia partido ao longo da vida.

Manuel Soares veio a falecer no dia 25 de setembro de 1989, às 23 horas e 55 minutos, sendo a causa da morte “insuficiência cardíaca congestiva”. Está sepultado no cemitério de Santo Amaro, em Vila Franca do Campo.
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31352,11 de outubro de 2017, p. 17)

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O voto dos animais


O voto dos animais

No concelho da Ribeira Grande, concorreram às eleições para a Câmara Municipal da Ribeira Grande quatro forças partidárias: O PSD- Partido Social Democrata, o PS – Partido Socialista, o BE- Bloco de Esquerda e a CDU- Coligação Democrática Unitária que junta o PCP – Partido Comunista Português e o PV- Partido Ecologista “Os Verdes”.

Após uma consulta aos seus “programas eleitorais” cheguei à conclusão de que apenas dois dos concorrentes apresentaram propostas relativamente à melhoria dos direitos dos animais no concelho, o PSD e o BE, o que não é má pois o tema em eleições anteriores nem era abordado.

O PSD, fazendo jus ao trabalho, embora insuficiente mas muito positivo, iniciado no mandato anterior, apresentou como propostas a criação de “um Programa Educativo de Sensibilização para o bem-estar animal, criando um espaço para atividades com animais”, a dinamização da “Casa dos Animais” com iniciativas que promovam a adoção de animais”, a continuação de “Campanhas de Esterilização e de Identificação de Animais” e o aumento do “valor do “Cheque Veterinário””.

O BE, que tem evoluído muito desde a sua fundação, sobretudo devido à sensibilidade dos seus militantes mais jovens, defendeu a “esterilização gratuita para animais de famílias carenciadas, animais adotados no município, e animais errantes”, a disponibilização de “cuidados veterinários a preços acessíveis para os animais de famílias carenciadas”, a “isenção do pagamento de licença e gratuidade na colocação do microchip” e propôs a recusa de “apoio institucional ou cedência de recursos para a realização de espetáculos com animais”.

Era de esperar a omissão do tema por parte da CDU, em virtude do conservadorismo do PCP em termos de abordagem de novos temas, ao seu apoio à tauromaquia em algumas regiões do continente português e ao pouco peso do partido “Os Verdes”, nos Açores. Em relação ao PS é de estranhar a omissão dado que há uma franja de militantes socialistas que é sensível à questão do bem-estar animal e aos direitos dos animais.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31351, 10 de outubro de 2017, p. 16)



terça-feira, 3 de outubro de 2017

Manuel Soares e o seu tempo (2)


Manuel Soares e o seu tempo (2)

Aos quinze anos meu avô, Manuel Soares, assistiu ao derrube da monarquia que como é sabido ocorreu no dia 5 de outubro de 1910.

O jornal monárquico, que nunca virou a casaca, “O autonómico”, a 15 de outubro do referido ano, recebeu a notícia da transformação do regime politico e, pela mão do seu diretor, afirmou o seguinte: “A implementação da república em Portugal é um facto sensacional. Se feliz ou infelizmente, verá e dirá quem mais vida tiver”.

Com o novo regime foi nomeado para o cargo de administrador do concelho o Dr. Mariano d’Arruda, talvez o mais influente político vila-franquense da 1ª República, que de acordo com o jornal mencionado foi merecido pois aquele “se tem manifestado um fervoroso apóstolo da República e dado provas de competente e prudente para as atuais circunstâncias”.

Em 1916, no dia 12 de agosto, Manuel Soares fez a inspeção sanitária para o serviço militar, tendo sido “apurado definitivamente” para a infantaria. Das informações constantes na caderneta consta o seguinte: possuía a altura de 1 metro, 71 centímetros e 5 milímetros e apresentava os seguintes sinais particulares: cicatrizes na testa e na face esquerda e sinais de cor castanha pelo rosto.

Entrou para a tropa no dia 12 de janeiro de 1917, no Regimento de Infantaria nº 26, ficou pronto da instrução de recruta no dia 10 de abril de 1917 e licenciou-se em 31 de junho de 1919.

Na caderneta militar consta ainda a seguinte informação, que contradiz o certificado de habilitações: habilitações literárias e profissionais antes do serviço militar “Ler e escrever mal (2º grupo).

Quando meu avô foi cumprir o serviço militar, o mundo já estava em plena Guerra Mundial (28 de julho de 1914 - 11 de novembro de 1918) e Portugal que, segundo José Pacheco Pereira, participava “na guerra para defender os seus direitos coloniais e para se candidatar a parte das possíveis reparações alemães” estava prestes a assistir ao verdadeiro cataclismo que ocorreu a 9 de abril de 1918. Segundo, Luís Almeida Martins, naquele dia “morriam 614 militares portugueses e 6585 eram feitos prisioneiros” na Batalha de La Lys.

Estava meu avô a cumprir o serviço militar quando ocorreu um surto de gripe espanhola. Conta ele que transportava doentes e que comia e bebia parte dos alimentos que a estes eram destinados e que era recusado por eles dado o seu estado de saúde. Dizia ele que tinha de comer para ficar forte e não ser atingido pela doença e “ria-se” por não ter ficado doente.

Sobre a gripe espanhola que teve duas vagas em 1918, uma na primavera e outra nos finais de julho/início de agosto e em 1919 e 1920, o historiador Luís Almeida Martins, escreveu: “O mesmo não se pode dizer da tristemente célebre “pneumónica” que em 1919 e 1920 se abateu sobre quase todo o mundo, ceifando pelo menos 50 milhões de vidas, 120 mil das quais de cidadãos portugueses”.

A confirmar as memórias de meu avô o historiador Sérgio Rezendes, no seu livro “A Grande Guerra nos Açores- Património e Memória Militar”, escreveu: “ A epidemia já havia atingido uma tal dimensão que começavam a faltar para além de médicos e enfermeiros, os auxiliares de enfermaria, os faxinas e os operários que acabariam por ser substituídos por soldados do Exército”. O mesmo autor, no livro mencionado, também refere que também foram “atacadas algumas praças do RI 26”, precisamente o Regimento de Infantaria de que meu avô fazia parte.

Sobre os efeitos da gripe espanhola em Vila Franca do Campo, o jornal “O Autonómico”, de 9 de novembro de 1918, referiu o seguinte: “ A epidemia que, por infelicidade, não nos poupou, vai-se alastrando consideravelmente por todo o concelho, de dia para dia, sendo já grande o número de pessoas atacadas; porém atualmente, mercê de Deus, nenhuma com sintomas de gravidade” e acrescenta que “até agora, apenas dois óbitos se registaram: um, por falta de mais cautela d’um rapaz novo, casado, deixando viúva e três filhinhos, e outro, por a epidemia bater à porta d’um doente, já adiantado em anos e cansado bastante das grandes lutas pela vida”.

(continua)
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31347, 4 de outubro de 2017, p.10)

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Solidariedade sim, mas sem crueldade


Solidariedade sim, mas sem crueldade

Nada temos contra a solidariedade que pessoas e algumas instituições prestam a outras, embora pensemos que com uma melhor organização da sociedade e com mais justiça social a maioria dos problemas deixariam de existir.

Como forma de arrecadar fundos para apoio às mais diversas causas, algumas instituições e pessoas recorrem à realização de eventos, alguns dos quais com a participação de animais, como são as touradas.

No século passado, realizavam-se, no continente português, touradas e provas de tiros aos pombos. Hoje, apenas se realizam touradas, pois a legislação portuguesa não permite a tortura de animais, com exceção de touros e de cavalos que também acabam por ser vítimas.

A contestação a estes pretensos espetáculos solidários não é de agora. Com efeito, já em 1948, no jornal “O Zoófilo”, um colaborador da Sociedade Protetora dos Animais, de Lisboa, sobre o assunto escrevia: “Que estes espetáculos se realizassem em tempos remotos, em que a violência era a regra, a força e a agilidade eram tudo e o espírito pouco ou nada, entre a grande massa do povo, compreendia-se; mas atualmente, que tanto se fala na cultura do espírito e que no domínio deste é fácil recriar e distrair os nossos semelhantes, isso não”.

No passado tal como hoje em dia, os defensores dos animais são criticados, embora injustamente, por insensibilidade aos problemas dos seus semelhantes. Sobre o assunto a Sociedade Protetora dos Animais foi bem clara quando afirmou que na sua campanha contra os espetáculos cruéis nem exagerava nem preteria a espécie humana e acrescentou:

“Cada instituição tem o seu objetivo, e as Protetoras fundaram-se para defender os animais.
Cumpriu ela o seu dever, cumpram-no também todas as pessoas de coração, protestando, não frequentando esses espetáculos e censurando quem lá vai”.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31346, 3 de outubro de 2017, p.11)