sexta-feira, 28 de julho de 2023

MANUEL VICENTE: UM PADRE CULTO E HUMANISTA (5)


O padre Manuel Vicente e a escrita

Desde muito novo o padre Manuel Vicente colaborou em alguns jornais de São Miguel.

Quando foi ordenado presbítero, o jornal Diário dos Açores, de 19 de agosto de 1893, refere-se a ele como “o nosso prezado amigo e distinto colaborador”. Durante algum tempo o Padre Manuel Vicente dirigiu a Gazeta Micaelense.

Em 1910, o padre Manuel Vicente fez parte da Comissão da Imprensa Micaelense responsável pelas festas em honra do jornal “Açoriano Oriental”, no 75º aniversário da sua criação. Para além do padre Manuel Vicente, que representou a redação do jornal vila-franquense “O Autonómico”, a comissão era composta por Alfredo da Câmara, diretor do jornal “O Reporter”, Alice Moderno, diretora de “A Folha”, Aníbal Bicudo, colaborador do “Diário dos Açores” e do “Açoriano Oriental”, Francisco de Bettencourt e Câmara, do “Correio Michaelense”, Francisco Manuel Bicudo Corrêa, representante da “Persuasão”, Padre Herculano Romão Ferreira, da redação do “S. Miguel”, Jacinto Leite do Canto Pacheco, da “Gazeta da Relação”, Manuel Pereira Lacerda, Diretor do “Diário dos Açores”, Manuel Resende Carreiro, proprietário do “Diário dos Açores” e Maria Evelina de Sousa, diretora da “Revista Pedagógica”.

No âmbito daquelas festividades foi organizado um banquete para o qual foram convidadas todas as pessoas que colaboravam com a imprensa periódica. Durante o jantar, de acordo com reportagem pulicada no Diário dos Açores, no dia 26 de abril de 1910, o Padre Manuel Vicente afirmou o seguinte:

“Aquela festa [era] uma glorificação da velhice, que é uma coisa triste quando se trata dos homens, mas é um motivo de júbilo e de verdadeira alegria quando se trata da longevidade de um jornal, porque a imprensa nunca envelhece e pelo contrário vive da força adquirida pela experiência dos factos, retemperando-se na luta durante o decorrer dos anos”.

No que diz respeito a publicações fora da imprensa periódica apenas se conhece a publicação de um folheto de 12 páginas intitulado “Alocução Religiosa”, onde o Padre Manuel Vicente transcreveu o sermão proferido na Igreja da Esperança por ocasião das Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, em 1901.

Sobre a publicação, ou melhor sobre o sermão, o multifacetado escritor, político e jornalista micaelense Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro (1863-1911) no jornal “O Localista”, de 12 de setembro de 1901, escreveu o seguinte:

“…. Era preciso dar um cunho novo à oração, e o sr. Padre Manuel Vicente preferiu aforma de alocução, em que se pode sintetizar a brevidade da doutrina com a elegância do estilo.

Se o tempo lhe não houvera escasseado, queremos acreditar que o inteligente orador teria alargado as suas vistas para a piedosa história da Imagem, mostrando, embora de relance, a vitalidade dos Sentimentos que, através dos séculos, ela inspirou ao nosso Povo nos momentos de angustiosos lances.

Dar-se-ia assim a significação histórica da festa que para os forasteiros não passaria talvez duma trivial romaria popular, seguida dum arraial com procissão.

Mas não foi possível ao sr. Padre Manuel Vicente entrar no campo da Crónica, uma vez que só quase à última hora recebeu convite para pregar.

Portanto, no apertadíssimo prazo que lhe deram para a preparação do seu trabalho, só lhe restava o expediente de optar pelo género alocucitivo, dando de mão a qualquer aparato de Erudição histórica.

Mas nisso foi muito feliz o sr. Padre Manuel Vicente, porque a uma oração, bastante condensada, soube imprimir um cunho literário acentuado, que a faz e fará ler com prazer por todos que amam as formas da boa prosa portuguesa.”

A seguir transcreve-se, na íntegra, o seu texto publicado no jornal Correio dos Açores, de 28 de junho de 1921.

O Império da Infância Desvalida

Carta aberta para o “Correio dos Açores

Meu Caro Doutor José Bruno

Seria uma falta imperdoável se o “Correio dos Açores”, que tem sido, nestes últimos tempos, o porta-voz da sentimentalidade micaelense e o agitador de muitas e generosas ideias, se não associasse a este movimento grandioso de caridade, que, amanhã, se fará em volta da Orfandade e da Pobreza.

Há dias que te prometi estas linhas, sabendo o desejo que tinhas de que fosse eu quem dissesse aos leitores do teu jornal o significado caridoso e cristão desta festa, que é, certamente, uma das mais civilizadoras, porque envolve uma lição no sentido mais elevado da pedagogia moderna- ensinar as crianças a sentir e a socorrer as desgraças alheias.

É preciso que elas vejam nessa original coroação das meninas do Asilo alguma coisa mais do que um cortejo banal e efémero, atravessando as ruas numa exibição irritante de vaidade e de luxo.

Se me fosse possível transcrever aqui o que, na “Actualidade” disse o mavioso poeta e primoroso estilista Cortes-Rodrigues, acerca desta festa de caridade, teria feito o maior elogio dela e dado aos teus leitores o resumo e a síntese do seu fim altruísta e social.

No entanto, permite que eu transporte para o “Correio dos Açores” algumas palavras sentidas do brilhante autor dos “Azulejos”:

“A festa que se vai empreender é duplamente atraente; é uma festa de caridade e é uma festa regional; deram-se as mãos a bondade e a poesia. Mais uma vez ainda é o sentimento cristão que nos une ao passado, à beleza dessas tradições arredadas de há muito da memória dos micaelenses, mas tão cheias de colorido e de um sabor bem vincadamente local.

Numa época em que tanto se fala de regionalismo, estas festas, em que se começam a reviver os personagens históricos, revestem-se ainda de um novo significado social. É assim que se avigora a beleza dos nossos costumes, é assim que renasce o amor à terra pelo amor a tudo o que é bem nosso e que o vento mau da desnacionalização tanto teima em apagar. E nos tristes dias da indiferença que vão correndo bendito seja a caridade que se perfuma de poesia e se cobre de flores para encher de conforto o regaço de criancinhas que ignoram o carinho de família e a despreocupação da abundância.”

Eu tinha pensado, meu caro doutor, num grande cortejo histórico, em que revivessem os velhos costumes dos nossos avós, tão devotos do Espírito Santo e, sobre tudo, tão caritativos!

Fantasias, meu amigo, de quem se esquece muitas vezes de que vive num meio comodista e indolente!
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Todavia, alguma coisa há de sair. Pelo menos uma grande coroação e uma grandessíssima colheita em dinheiro e em géneros, - o que já não +e para desprezar nos tempos que atravessamos.

Se o Império da Infância vingar e se perpetuar, então, em mais tempo e com mais estudo, os nossos eruditos e investigadores da história e da indumentária açorianas, meterão ombros a essa curiosa empresa que eu sonhei e se realizará, certamente, se quiserem trabalhar nela homens do valor do ilustre Diretor da “Revista Micaelense” e dos zelosos colaboradores do “Arquivo dos Açores”, que vem desentranhando, com amor, dos velhos documentos aquilo que constitui o orgulho e o vigor da nossa raça.

Como a festa está à porta, e, agora, só nos resta tempo para cuidar daquilo que mais interessa à felicidade e à vida daquele bando de infelizes crianças- a sua sustentação- dize, meu amigo, aos teus leitores: que a bondade do coração micaelense vai ser, mais uma vez, demonstrada nesta festa.

Para terminar, dir-te-ei em duas palavras o que me referiu uma senhora protetora do Asilo:

“Algumas daquelas crianças, que tinham de comparecer numa festa particular em seu benefício, não assistiram a ela por falta de calçado!...E outras tiveram de remendar os sapatinhos com linhas do seu cesto de costura …”

Nota, meu bom amigo, que isto acontece quando, por toda a parte, e nos pés de tanta gente, se ostenta o sapato de pelica doirada, com saltos tão altos…tão altos… que dariam um par de botas às infelizes crianças!

Se, amanhã, o Sol do estio nos faltasse, como é de prever, a iluminar as ruas desta cidade em festa, estou certo de que o Sol da Caridade aquecerá também, num beijo amorável, o mais lindo cortejo da nossa linda terra.

Teu amigo do coração

Padre Manuel Vicente

25 de julho de 2023

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