terça-feira, 1 de novembro de 2022

CARIDADE E SOLIDARIEDADE


CARIDADE E SOLIDARIEDADE

Dividi este texto em duas partes: na primeira dou a conhecer uma campanha de auxílio aos pobres, prática que contrariava os princípios cristãs que eram defendidos pelo Estado Novo e na segunda divulgo duas reflexões sobre caridade.
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No dia 25 de fevereiro de 1940, o Correio dos Açores, através do seu correspondente em Ponta Garça, freguesia do concelho de Vila Franca do Campo, localizada na ilha de São Miguel, nos Açores, noticiou que naquela localidade rural a Comissão Paroquial havia recebido do administrador do concelho 13 xailes e 5 casacos para serem distribuídos pelos pobres que eram em número de 75 e em seguida escarrapachou o nome das pessoas que receberam a esmola.

A comissão paroquial esqueceu-se do que, segundo o diácono Joaquim Armindo, São Mateus terá dito: “Quando, pois, deres esmola, não permitas que toquem trombetas diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: Já receberam a sua recompensa. Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo; e o teu Pai, que vê o oculto, há-de permear-te.”

Para além do esquecimento, a referida comissão pretendeu tirar dividendos políticos ao afirmar que “nunca houve governo que se lembrasse dos pobres e lhes distribuísse esmolas. Fê-lo o Governo do sr. Dr. Oliveira Salazar, que tem olhado com amor e carinho pelos desprotegidos da sorte”.

Curioso é também o relato de como as esmolas eram recebidas. Assim, na notícia que vimos citando pode ler-se o seguinte: “Quando fizemos a distribuição dos donativos, os comtemplados diziam: “Deus dê saúde ao grande benfeitor Sr. Dr. Oliveira Salazar” “Eu peço nas minhas orações a Deus que lhe conserve a vida por muitos anos”. “É um Santo Homem” “não se esquece dos pobres” “Deus há-de recompensá-lo disso.”
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Caridade e solidariedade são palavras que por vezes são usadas como sinónimas. Contudo, há quem pense que tal não é correto, isto é, as duas palavras apresentam significados bastante diferentes.

O geógrafo brasileiro Amir El Hakim considera que só há solidariedade entre iguais, por exemplo quando numa comunidade vítima de umas cheias as pessoas perante o sofrimento dos seus vizinhos procuram de algum modo minimizá-lo. A caridade, por outro lado, é exercida entre desiguais. No ato de caridade, há um agente, que está acima na hierarquia social, que doa algo e ao que está num patamar inferior apenas lhe resta agradecer.

Ainda sobre o assunto, o autor acima citado escreveu o seguinte: “A caridade cristã não discute os pormenores, as profundezas de uma sociedade cindida pelo dinheiro, muito menos as gritantes diferenças sociais existentes em um país capitalista de terceiro mundo, ou para os mais apressadinhos “emergentes”. Esta sublima essa relação. Faz de conta que a pobreza e a riqueza são traços naturais de uma sociedade pautada pela chamada meritocracia”.

O escritor José Rodrigues Miguéis também aborda a questão da caridade no seu livro “É Proibido Apontar- reflexões de um burguês-I”, que foi publicado pela primeira vez em 1974 pela Editorial Estampa. De entre o que ele escreveu destaco o seguinte: “Chego a perguntar se a caridade não será um traço de carácter peculiar do meu atraso; indício de incultura, ou pior, o tapa-culpas da minha inação, impotência ou indesejo de remediar os males que me afligem; mecanismo mental de ajustamento à miséria, compensador do remorso ou mal-estar que nos dá o sofrimento alheio; a “bula” ou salvatério espiritual que me dispensa da intranquilidade de consciência , dando-me a ilusão da minha bondade pessoal, a satisfação legítima e sincera de socorrer o meu semelhante; e, sempre, a certeza de que salvo a minha própria alma! Porque enfim, apiedar-se é arrepender-se, penitenciar-se: e, portanto, muito nos será perdoado. Quem dá aos pobres empresta a Deus (com juros compostos?), e que mais pode um homem de boas contas ambicionar do que ser credor do Eterno?”.
Teófilo Braga
(Letra a Letra, nº12, novembro de 2022)

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