quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A propósito da avaliação nos Açores

Escola Secundária Antero de Quental, 21 de Outubro de 2008


Colegas

Escrevia o outro dia ao nosso colega, sem me sair do olhar, em pleno bosque, no Conselho Pedagógico, o Sambuco (nome fictício) de entre os vários personagens do “Sonho de Uma Noite de Verão” de Shakespeare. Se era com Nick Bottom de focinho de burro que a rainha das fadas, Titany, se embeiçava de amores, não estava Sambuco embeiçado por figura menos caricata e menos virtual:

Sambuco
(A propósito da supina avaliação docente)

Amante assim tão forte
Sambuco?
Amante assim tão cego
Em diurna celebração?
Que mago, que flor,
Que floresta,
Te embrenha em tão estrénua ternura
Por corpo tão desconforme,
Por objecto tão indiscreto,
Por tão impúdico serviço,
Da legal mancomunação?
Sem fim,
Sambuco,
A tua noite de verão?

Pedro
16 Out 08

Não já no bosque, mas no meu carro eléctrico, a caminho da escola, ouvi o outro dia um excerto da ópera cujo teor de fina crítica ao regime do fuhrer, não caindo bem aos SS de serviço, deu livre trânsito aos dois notáveis músicos da tolerada prisão de artistas directamente para o eficaz campo de extermínio.
Não sou notável, muito menos músico.
No entanto aos olhos dos meus colegas poderei estar a exorbitar na licença de vida que me dão os guardas do regime.
Reparem bem no figurino de escola que se tem vindo a desenhar e no carácter, ou falta de carácter, como queiram assumir, da lei de avaliação docente, e digam-me se ao abrir-lhe a boca lhe não vêem dentes iguais em iniquidade, em cinismo, em despudor, em desrespeito, aos dos de muitos comandantes de castelo e de chefes de quina da insidiosamente chamada “Mocidade Portuguesa”? (Falo para os que têm idade para se lembrarem disto e para aqueles que, sendo mais novos, não têm da história só a memória da sebenta que, devidamente decorada, ou passada no pente fino da cábula, lhes abriu as portas do desejado bom desempenho). É forte demais tal comparação? Ou é forte demais o que se desenha - e o medo, o atentismo, o dolo, a cobardia rasteira, o fazer de conta, batem à porta?
É bom que não haja dúvidas quanto ao carácter político desta avaliação dos docentes. É requintadamente nazi. Como naqueles breves treze anos de eternidade de terror para quem neles viveu, os nazis, “democraticamente” alcandorados ao poder, tinham nos outros, na massa da população docente, discente, operária, camponesa, etc., os instrumentos de acção e de coacção que eles por si sós nunca teriam possibilidade de garantir e de impôr.
Se politicamente esse é o coração de aço da avaliação docente da ministra em exercício e desiderato decisivo do libreto da opereta na qual afina Sócrates a voz que o mantém em cena, esta avaliação docente, tecnicamente, é uma verdadeira fraude.
Tecnicamente é tão fraudulenta, que são os próprios promotores dela os primeiros a tentar adoçar o amargo de boca que a sua operacionalização já está a causar.
Argumentam já alguns, a defender a sua dama, que a coisa pode não ser exactamente com o rigorismo da lei. Que uma aula não tem necessariamente de ser entendida em bloco, e que bem podem bastar 45 minutos de observação: há é que cumprir a observação, há é que cumprir o processo administrativo, com entrevista e tudo - e está feito!
Não contem comigo para isto.
Prefiro lutar, tal como preferi há dois anos arrostar a prisão do que demitir-me do direito de exercer, forte, é certo, mas alicerçada, a minha crítica à acção governativa. Tive na altura a boa sorte de deparar com uma Juíza de carácter e de coragem, advogados de excelência, e generosos cidadãos a depor, não propriamente a meu favor, mas a favor do direito de opinião e de lídima luta.
Prefiro lutar, tal como preferi há cinco anos arrostar o iníquo processo disciplinar na Escola Canto da Maia. Tive na altura defesa pelo advogado do Sindicato que me tem aceite como sócio mas me abandona no fim da acção, depoimentos de colegas, e o perjuro do Presidente do Executivo que me levantou o processo.
Por que é que afirmo que é politicamente nazi o processo de avaliação em curso?
É porque se alicerça, tal como aconteceu nos anos trinta e quarenta na Alemanha - com simpatizadas releituras em praticamente todos os países europeus e até nos EUA - num castelo de teoria edificado com o cimento do preconceito e a armadura do estereótipo elevados a campo duma realidade quotidiana tão mais virtual nas impostas representações quanto mais subjugadamente, ferozmente, cruamente, duramente, redutoramente vivida. É o paraíso da propaganda e a ocultação do inferno.
E por que é que afirmo que é tecnicamente uma fraude?
Dou a este respeito uma simples referência para os que dizem que gostam de falar uma mesma linguagem de profissionalismo e eficiência: HACCP (Hazard Analysis and Critical Control Point).
Por qualquer ponta por onde queiram pegar no processo de avaliação, que o governo de Sócrates tem como indispensável e decisivo para o cumprimento do seu exaltante desempenho governativo, constatarão que 1) a análise de risco incide na classe docente, 2) identificam os professores como pontos críticos a controlar, 3) os limites críticos para cada ponto crítico e a 4) monitorização requerida para cada ponto crítico, são estabelecidos para a pessoa de cada docente, 5) as acções correctivas são estabelecidas para a pessoa de cada professor, 6) o arquivo de registos estabelece-se com a fichagem docente a docente e 7) os procedimentos estabelecidos para garantir que o HACCP está funcionando como deve ser passa pelo envolvimento dos próprios professores no processo.
Como se evidencia, esta avaliação docente prima logo à partida pela unilateralidade da evidência, pela descontextualização da acção, pela arbitrariedade da conclusão, pela promoção do abuso, pela exaltação do absurdo.
Não conduz a melhoria qualquer do ensino, visto que não é esse o objecto em avaliação (longe disso! Que o HACCP tem de ficar bem longe de tão inoportuna fantasia!).
Destrói, sim, desorganiza, sim, perturba, sim, o processo de ensino/aprendizagem e a própria avaliação do ensino/aprendizagem. Como já está a acontecer há muito, aliás, pois este figurino curricular, que já se passou a ferro e ora se impõe ao corpo incomodado da nação, foi começado a executar na segunda metade de oitenta do século passado pelo 1º Ministro Cavaco com o Ministro Carneiro na pasta da Educação, logo após a mordomia do Dr. Mário Soares ter dado entrada da CEE em Portugal.
Mas não são tão ilustres antecessores razão para deixar de perguntar se o Sr. 1º Ministro José Sócrates mais a sua colega Sra. Ministra Maria de Lurdes Rodrigues se não terão equivocado nas funções, dado que, apesar de tudo, a avaliação docente mais parece saída da António Maria Cardoso do que de S.Bento.

Grato por eventual atenção,

Pedro Albergaria Leite Pacheco
(Professor do Quadro de Nomeação Definitiva)

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