sexta-feira, 10 de abril de 2015

Santa Casa nem sempre é casa santa


Misericórdia (s)

Hoje, não vou escrever sobre a etimologia da palavra, nem sobre o conceito de misericórdia e muito menos sobre o papel que as Santas Casas da Misericórdia desempenharam ao longo da história e ainda hoje desempenham em prol das comunidades onde estão inseridas.

Infelizmente, não vou escrever sobre o que de melhor se faz nas Santas Casas, num mundo em que as desigualdades não param de crescer e onde a justiça social teima a não ser prioridade, pelo contrário vou aproveitar o espaço que me é concedido semanalmente para dar a conhecer alguns episódios ocorridos que mostram alguns interesses obscuros que por vezes andam associados ao que devia ser o trabalho desinteressado em prol dos outros, sobretudo dos menos bafejados pela sorte ou dos mais injustiçados pela sociedade.

Através da consulta feita a várias páginas da internet e através de várias notícias publicadas em diversos jornais, ao longo de alguns anos, não foi difícil constatar que tal como sindicatos, clubes desportivos, associações dos mais diversos tipos, etc., as Santas Casas da Misericórdia são também palco de lutas partidárias, são alvo de autênticos assaltos pelas forças políticas ou servem de ponto de passagem ou lugar de promoção de alguns indivíduos ou de trampolim para outros cargos, geralmente de cariz político, com destaque para os proporcionados pelas diversas autarquias.

Para não ofender ninguém, não vamos fazer referência a casos dos nossos dias, embora eles estejam à vista de quem ainda usa os olhos para ver e o cérebro para pensar. Assim, como primeiro exemplo, referiremos uma caça ao voto feita em Vila Franca do Campo no final do século XIX.

O jornal vila-franquense “O Sul”, de 11 de dezembro de 1897 ao relatar o processo eleitoral para os órgãos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Vila Franca do Campo escreveu o seguinte:
“Repugnou-nos a forma com que um sábio, o absoluto Pácha, a symphathica “ave de arribação”, o presidente do panamá da Ponte Torta, o engajador de recrutas, o intitulado governador de Villa Franca, procedeu tão vil e indignamente, mendigando votos, porteiramente, para esta eleição com o fim único de ver fora do hospital o mais zeloso administrador da Santa Casa da Misericórdia”.

Sobre o assunto, o colaborador de “O Sul”, José Picareta, escreveu uma gazetilha de que se transcreve um excerto:
“Da Santa Casa a partida
Perdeu o doutor Cabral,
Que o homem cheque levou…
Esforços fez ele muitos,
Não lhe faltaram caniços
Também as iscas, enguiços,
Mas peixe não apanhou!”

Já quase a terminar a primeira república, quinze anos depois da implantação desta, em Vila Franca do Campo os monárquicos encontravam-se agarrados ao poder na Santa Casa da Misericórdia de tal modo que as suas tropelias, para não dizer aldrabices, para se perpetuarem no poleiro chegaram, ao parlamento nacional, pela voz do “ilustre senador”, Dr. António de Medeiros Franco.

O Correio dos Açores do dia 28 de janeiro de 1925 transcreve um resumo da intervenção do Dr. António Franco na sessão do dia 16 do referido mês e ano que dado o interesse abaixo se reproduz:

“Sr. Medeiros Franco – Chama a atenção do Sr. ministro do Trabalho para uma eleição que há pouco tempo se realizou da mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Vila Franca do Campo. Classifica de simulacro de eleição o que ali se fez. Não se cumpriram as disposições estatutárias, fizeram-se descargas a esmo, e tudo no propósito de excluir os republicanos da administração daquela casa de assistência. Protesta contra o facto que considera lesivo dos direitos dos republicanos locaes e pede um rigoroso inquérito ao que ali se passou.”


Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 30600, 8 de abril de 2015, p.16)

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