domingo, 23 de abril de 2017

Gonçalves Correia nos Açores


Gonçalves Correia nos Açores

Nos Açores, as várias correntes anarquistas sempre tiveram muito pouca expressão, sendo muito reduzido o número de jornais libertários publicados e também reduzido o número de militantes.

No que diz respeito aos anarquistas açorianos, a esmagadora maioria deles teve uma militância fora do arquipélago. Entre eles, recordamos António José Ávila, Adriano Botelho e Jaime Brasil, os três naturais da ilha Terceira.

Da ilha de São Miguel conhecemos alguns nomes que durante uma fase das suas vidas aderiram às ideias libertárias, mas que não mantiveram os ideais até ao fim da vida. O mais conhecido terá sido Francisco Soares Silva que fundou e dirigiu o jornal “Vida Nova”, de periodicidade quinzenal, que se apresentava como “Órgão do Operariado Micaelense” e que começou a publicar-se a 1 de Maio de 1908, tendo o seu último número saído a 30 de Setembro de 1912.

O anarquista Gonçalves Correia esteve de passagem na ilha de São Miguel em 1910, tendo conversado com Francisco Soares Silva e tudo leva a crer que terá feito o mesmo com Maria Evelina de Sousa, professora primária que foi fundadora e diretora da “Revista Pedagógica”, publicação que se apresentava como órgão do professorado oficial açoriano e que, entre 1909 e 1915, esteve ao serviço da educação e dos professores, tendo sido distribuída a nível nacional.

No nº 54 do Vida Nova, de 31 de dezembro de 1910, foi publicado o texto de Gonçalves Correia “Amor Livre, nos números 55 e 56, respetivamente de 15 e 31 de janeiro de 1911, foi publicado o texto “A caminho do ideal”, e, por último ,no nº 57, de 15 de fevereiro de 1911, foi publicado o texto “Nós e os camponeses”.

A colaboração de Gonçalves Correia com a “Revista Pedagógica” ocorreu com a publicação do texto “O presente e o futuro”, datado de 29 de dezembro de 1910, publicado no seu número 167 de 9 de fevereiro de 1911.

Teófilo Braga

O Presente e o Futuro
*
Vergados ao peso brutal e desumano do maldito fardo posto aos seus ombros enfraquecidos, jungidos à canga infamíssima que a ordem burguesa criou, ei-los que passam tristes, os pobres proletários desprotegidos, sofrendo os horrores indescritíveis que uma sociedade madrasta lhes criou.

Na sua casa cheia de misérias e privações, não se ouvem as risadas francas e espontâneas das crianças, não se vê o riso jovial e presenteiro da companheira idolatrada, não se apalpa uma nesga sequer, daquele conforto que ele criou com o seu braço possante e fecundo, daquele conforto exagerado que sobra em casa de tantos parasitas…

Os seus olhos – pobres camaradas - não brilham porque o choro os inunda de lágrimas, o seu rosto, outrora alegre e sorridente, cobriu-se de rugas tristonhas; o seu andar, que era regular e normal quando as forças o não haviam abandonado, dá-nos agora a impressão desoladora da sua fraqueza. E tudo mais que lhe diz respeito, é pungente e angustioso. Pobres e desgraçados proletários!

Pobres que tendes de ver com fome os vossos filhos! Pobres que sentis partir o coração por não lhes poderdes satisfazer as mais imperiosas necessidades! Pobres que deixais morrer a companheira querida, tantas vezes a vossa maior alegria, a vossa maior consolação!

Quem sois vós!

Os degraus preciosos por onde sobem milhares de parasitas, a escada apetecida dos mais tirânicos burgueses!

Eis o presente.

*

Soberba de vegetação e verdura, riquíssima de águas cristalinas, e de avezinhas multicores, eis ante os meus olhos famintos do Belo a encantadora planície onde se erguem com orgulho majestosos chalets de formas várias, partes constituintes d’uma comuna fraternal e solidária, cujos habitantes, pondo de parte egoísmos do passado e vaidades que esqueceram, se amam, se compreendem, se solidarizam irmãmente, sabendo compreender a sua missão social até ao ponto de exigirem de cada um segundo as suas forças e de darem a cada um segundo as suas necessidades. As asas repelentes e agourentas da miséria não visitam aquele ponto ideal, enxotadas criteriosamente pelos seus habitantes que souberam atacá-las coletivamente, que compreenderam a tempo a beleza incomparável do comunismo livre.

Desgraças naquele paraíso?

É doença que por lá não medra porque a caudalosa corrente de solidariedade que ali se pratica não permite a sua propagação.

Tudo é livre e, ao mesmo tempo, tudo é criterioso. Todos amam e todos são felizes.

Ricos? Não há.

Pobres? Também não.

Pois? Solidariamente, coletivamente, fazem a riqueza da comuna, arrancando à terra, a mãe querida do homem, tudo que constitui os seus prazeres, os seus risos, as suas felicidades.

Vida de lágrimas e de crimes, trocada por uma vida de amor e de Justiça!

Eis o futuro.

Ponta Delgada, 29-12-910

Gonçalves Correia

https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2017/01/29/lisboa-cruzeiro-seixas-na-apresentacao-da-revista-de-cultura-libertaria-a-ideia-relativa-a-2016/

Publicado na revista A Ideia, 77/80 de 2016

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