quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A propósito de Agostinho da Silva e das festas do Espirito Santo


A propósito de Agostinho da Silva e das festas do Espirito Santo


Introdução
Desde os primórdios do povoamento do arquipélago, as festas do Espírito Santo são a maior manifestação da cultura e da religiosidade populares dos açorianos. Por tal motivo, ao longo dos tempos têm sido alvo de estudos vários, com destaque para os de cariz etnográfico.

No presente texto, não pretendendo esgotar o assunto e salvaguardando que não é possível fazer generalizações, pois há grandes diferenças nos festejos, mesmo dentro de uma dada localidade, abordaremos os seguintes tópicos: o culto do Espírito Santo para Agostinho da Silva, a evolução das festas na ilha de São Miguel, as festas, os gastos e a caridade, as tentativas de controlar as festas por diversas entidades, nomeadamente pela Igreja Católica e, por último, o tratamento dado aos animais.

O culto para Agostinho da Silva

O culto do Espírito Santo foi trazido para os Açores pelos primeiros povoadores portugueses, tendo sido depois levado, pelos açorianos, para os quatro cantos do mundo, nomeadamente para o Brasil e para a América do Norte.

Para a maioria da população dos Açores, creio, a Rainha Santa Isabel (1271-1336) é tida como a responsável pela criação das festividades e culto do Espírito Santo em Portugal. O etnógrafo micaelense, natural de Vila Franca do Campo, Padre Manuel Ernesto Ferreira, apresenta a hipótese do nascimento das festas em Coimbra ou em Alenquer, mas liga-as sempre à Rainha Santa Isabel, como se comprova pela seguinte frase: “O que parece mais provável é que a Rainha Santa, à imitação do que se fazia talvez em Espanha ou na Alemanha, instituísse a comovente solenidade em várias localidades, em anos em que acontecesse achar-se nelas no domingo de Pentecostes”(Ferreira, 1993, 179).

O historiador Jaime Cortesão (1884-1960), citado por Cabral e Nunes (1982-1983), sem por de parte o papel da Rainha Santa Isabel defende que a origem das festas do Espírito Santo deveu-se “a franciscanos, de tendência espiritual, e que a rainha [Isabel] a quem aquele culto de família e as cerimónias próprias lisonjeavam o tenha favorecido” (p.809).

Agostinho da Silva (George Agostinho Baptista da Silva), filósofo nascido no Porto em 1906, que faleceu em Lisboa em 1994, não contraria Jaime Cortesão, tendo sobre o assunto escrito o seguinte: “… é a do Culto Popular do Espírito Santo, afirmando em pleno durante duzentos e cinquenta anos, desde Isabel a Dom João III, sobrevivendo como pode no Continente, enraizado ainda nas Ilhas e em seus focos de imigração, passado, e nela igualmente radicado, a tanta localidade brasileira desde o XVI por diante” (Silva, 1988, p. 99).

Agostinho da Silva que terá tido contato com as festas do Espírito Santo no Brasil, país onde viveu, entre 1944 e 1969, não escreveu sobre o que observou, mas terá idealizado o que deveria ser o “culto popular do Espírito Santo”, que segundo ele “é a religião viva dos Açores, tão viva que me parece que a obrigação essencial dos açorianos deveria ser a de irem pelo mundo como missionários do seu culto” (Silva, 1996, p.21).

Nas festas do Espírito Santo, há três componentes, a coroação, o bodo e a libertação de presos. Com efeito, segundo Agostinho da Silva, “o que o Povo diz no seu mais autêntico e espontâneo Culto é que devam as Crianças a governar o mundo, como afinal defendia Cristo; que deve o que se consome de básico ser abundante e gratuito, como nas Bodas de que fala o Evangelho, multiplicando-se o Pão; que se devem abolir as prisões, como ordena o “Não julgueis” (Silva, 1988, p. 99).

No seu texto “A Educação de Portugal”, Agostinho da Silva relembra as várias componentes do culto e destaca uma delas. Assim, segundo ele “o ponto fundamental, do culto popular do Espírito Santo não é, porém, nem o banquete comum e livre, nem o soltar de presos, nem a procissão que segue a Pomba, no estandarte ou coroa; é a instalação de uma criança como Imperador do mundo” e acrescenta: “No Paraíso terrestre que se quer dispensam-se os adultos de todas as funções dirigentes que têm tido até hoje e se declara mais importante que tudo quanto possa ter sido na vida o menino que foram e tão infelizmente morreu; declara-se que todos os imperadores de qualquer Império declarado Santo pela vontade, os interesses e os apetites dos homens, devem ceder seu trono às características infantis de atenção contínua à vida, de existência total no presente, de ignorância de códigos, manuais e fronteiras, de integração no sonho, de valorização do jogo sobre o trabalho, de simpatia pela cigarra, que logo a nossa escola substitui pelo aplauso à formiga, já que uma convém à alegria, apenas, e a outra ao lucro “(Silva, 1996, pp. 23-24).

Sobre a evolução das festas do Espírito Santo na Ilha de São Miguel

De acordo com o Padre Ernesto Ferreira, depois da iniciativa dos reis, os fidalgos obtiveram autorização para replicarem as festividades e “para mandarem fazer uma corôa similhante á portuguesa e que se chamaria Corôa Real do Divino Espírito Santo.” (Ferreira, 1993, p.180).

O mesmo etnógrafo, aventou a hipótese de o donatário das ilhas e dos fidalgos que com ele vieram terem trazido coroas e de que a devoção que estava associada à prática de “frequentes actos caridosos” (Ferreira, 1993, p. 180) se ter estendido às camadas populares.

Num texto de 1923, o escritor e etnógrafo vila-franquense Armando Cortes Rodrigues (1891-1971), um dos colaboradores da revista Orpheu, num texto publicado no Arquivo dos Açores intitulado “As festas do Espírito Santo na Ilha de S. Miguel” condena algumas alterações que ocorreram nas festas ao longo dos tempos. Sobre o assunto, Cortes Rodrigues, escreveu o seguinte:

“As folias, mesmo nas aldeias, vão sendo substituídas pelas filarmónicas; as coroações caíram no exibicionismo do luxo, aparatoso desfile de vestuários, feira de vaidades entre o sorriso inocente das creanças; o pensamento da caridade, vincando o valor social destes festejos, vai diminuindo tanto mais, quanto maior é a sua paganização.

Naquela parte do povo, onde é mais funda a ignorância religiosa, encontra-se um culto supersticioso e incoerente do Espírito Santo, simbolizando na coroa, no sceptro e na bandeira, a quem atribuem baixas qualidades como o rancor e a vingança, facto que pouco se harmoniza com a maioria dos sentimentos de religiosidade das promessas que motivam quasi todas estas festas.”.

O vigor das festas não foi sempre o mesmo ao longo dos tempos, havendo épocas em que quase desapareceram. O Padre Ernesto Ferreira (1993) menciona que “por volta de 1665 se achavam confinadas no Convento de Santo André de Vila Franca do Campo.

Idêntica opinião apresenta o investigador e publicista Aníbal Bicudo e Castro (1874-1948) que, no jornal Diário dos Açores de 15 de maio de 1924, depois de associar o revigoramento das Festas do Espírito Santo a diversos cataclismos ocorridos na ilha de são Miguel, como a subversão de Vila Franca do Campo, em 1522, ou a gripe pneumónica de 1673, lamenta o esbatimento do culto quando as pessoas se esquecem do sofrimento provocado pela Mãe Natureza.

Sobre o culto do Espírito Santo a dado passo do seu artigo podemos ler o seguinte:

“…Culto sempre latente na alma micaelense, ou melhor na alma simples e generosa do povo sertanejo, que é, na derrocada do presente momento, quem guarda avaro o escrínio das nossas melhores tradições [….]. Ao povo simples dos nossos campos não é mister relembrar o milagre da Pombinha, porque d’elle guarda impoluta memória e excelso culto…”(Castro, 1924, pp.2 e 4)

Relativamente às alterações mais recentes, como cada caso é um caso, faremos apenas referência à das Festas do Espírito Santo de Pentecostes que se realizam anualmente na freguesia da Ribeira Seca de Vila Franca do Campo que acompanhamos desde meados da década de 60 do século XX, por sermos naturais da localidade.

No que diz respeito às festividades propriamente ditas, o essencial ocorria na sexta-feira (dos gueixos), dia em que havia a recolha dos animais (nomeadamente touros e bezerros). Destes, alguns eram arrematados para a realização de receitas para custear as festas, outros, os mais novos, eram entregues a criadores para serem alimentados até ao ano seguinte e outros eram abatidos, sendo a sua carne usada no jantar dos criadores, nas ofertas aos mais necessitados, essencialmente a viúvas e viúvos, e a restante nas pensões não só dos criadores, mas também de pessoas que pagavam para tal.

O sábado era dedicado à distribuição das pensões, no domingo realiza-se a componente religiosa, com a coroação, em geral de crianças, e missa na Matriz de São Miguel Arcanjo e na segunda-feira da Pombinha, realizava-se um arraial abrilhantado por uma filarmónica local.

Hoje, a situação é bastante diferente, como se poderá ver através da consulta ao programa das festas do presente ano. Assim, de entre as alterações registamos as seguintes: na sexta-feira foi introduzido um espetáculo musical, no sábado outro espetáculo musical com uma cantora contratada no continente português, neste caso a “Rosinha”, seguida de um DJ (disco-jóquei), no domingo foi introduzida uma noite de fados e mais um espetáculo com um DJ, na segunda-feira mais um espetáculo musical, o mesmo acontecendo na terça-feira.

Outra das alterações ocorridas na Irmandade de Pentecostes da Ribeira Seca foi a institucionalização da organização das festas que se traduziu na diminuição da participação da população na escolha dos organizadores das mesmas. Se antes, no último dia, dia da apresentação das contas que ainda se mantem, a população tinha a possibilidade de escolher o Mordomo para o ano seguinte, agora as festas são organizadas pela Irmandade que se encontra devidamente legalizada como associação sem fins lucrativos e a escolha do Mordomo é feita de entre os associados da mesma.

Ainda em relação às Irmandades, embora não possa garantir que seja regra geral, conheço três em que as mulheres, que são as grandes obreiras das festas, não fazem parte das mesmas, embora nos estatutos não haja qualquer disposição que as impeça.

Em jeito de conclusão, podemos dizer que enquanto a componente religiosa se manteve, a componente profana mais do que quadruplicou, pelo menos em termos de custos e a ajuda ao próximo nas festas do Espírito Santo quase desapareceu.


As festas, os gastos e a caridade.

Antes de apresentar algumas informações relativas à prática da caridade nas festas do passado e da atualidade, recordo que Agostinho da Silva sobre a mesma escreveu que “tempo virá de caridade, entendendo-se caridade não como aquele suplemento de humilhação que se leva aos que caíram na luta, mas como o amor irrestrito que, embora consciente dos defeitos do amado, o ama sem pensar em saldo positivo ou negativo” (Silva, 1996, p.11).

No século XIX, há vários relatos de festividades em honra do Espírito Santo, onde estão presentes as esmolas aos presos e aos mais necessitados.

Numa notícia, relativa a 1851, compilada por Francisco Maria Supico, podemos ler que num Império de Ponta Delgada foram distribuídas 700 esmolas. No mesmo império, e de acordo com Supico (1995, p. 583) no sábado “foram distribuídas esmolas às recolhidas da Trindade, Santa Bárbara, presos, e grilhetes do calabouço” e no domingo foi realizada uma procissão que levou “o jantar aos presos nas cadeias” e no arraial foram distribuídos “aos pobres que ali se encontravam, muito pão em fatias e algum vinho”. Na segunda-feira, na Mordomia, foi servido um jantar aos pobres.

A miséria em que vivia uma parte da população era tal que segundo a mesma fonte, no ano seguinte no Império da Santíssima Trindade de São Pedro Gonçalves, “por todo o correr da tarde de segunda-feira se revezavam as mesas em que centenas de pobres se assentaram como sempre servidos com a maior abundância e fartura…Distribuíram-se pelos pobres cento e onze arrobas de carne e três mil pães, quatro pipas de vinho, laranjas…” (Supico, 1995, p. 584)

Não contestando a necessidade do povo se divertir, Francisco Maria Supico, num texto publicado em 1857 no jornal “O Templo”, condenou “essas pomposas festividades chamadas impérios por não satisfazerem as “intensões dos que para elas concorrem com donativos, e muito menos os preceitos da caridade que nelas tanto se alardeia” (Supico, 1995, p. 586).

Que razões apresentou Supico para contestar alguns aspetos das Festas do Espírito Santo?

- Primeira razão- Se é verdade que a classe pobre é beneficiada, também é verdade que se muitos desacatos são cometidos. O autor não menciona, mas há relatos de muita pancadaria associada ao consumo de bebidas alcoólicas.

- Segunda razão- As intenções são beneficiar a indigência, mas esta nem sempre é beneficiada. Segundo Supico (1995)“na distribuição das esmolas no arraial de qualquer império, são as mesas cercadas quase exclusivamente por mendigos de profissão …Há um considerável número de indigentes que circunstâncias naturais tem reduzido a semelhante estado, que preferem estalar de fome em suas moradas, a sujeitarem-se a ir demonstrar a sua miséria no meio de tanto aparato”(p.586).

- Terceira razão – A filantropia não se pratica publicitando os atos. Supico escreveu: “Não se pratica a caridade num arraial guarnecido de loiros e flores abrilhantado de bandeiras, ao som de músicas e algazarras. Por certo que não é isso a caridade ensinada por Jesus Cristo” (p. 586).

No dia 25 de maio de 1929, de acordo com o jornal Correio dos Açores, do dia 4 de junho do mesmo ano, ocorreu a distribuição de pensões do império de Almeida, tendo havido “farta distribuição de esmolas de pão e carne pelos pobres, no que se praticou a sublime virtude da Caridade.”

Em 1932, o Correio dos Açores, do dia 20 de maio, noticiou várias festas do Espírito Santo realizadas no concelho de Vila Franca do Campo, tendo a propósito do Império do Largo Bento de Góis, depois de se referir ao “ostracismo a que tinha sido votado durante alguns anos” afirmado o seguinte: “Foi-lhe dada uma nova feição, que também devia ser seguida pelos outros impérios, a prática da “Caridade”, em harmonia com o verdadeiro Espírito Santo”.

Hoje, se se analisar os orçamentos de algumas irmandades, por vezes movimentando valores superiores a 50 mil euros, verifica-se que a solidariedade ou caridade é responsável por uma parte ínfima das despesas.

As tentativas de controlar as festas populares

Ao logo dos tempos, foram várias as tentativas de disciplinar as festas do Espírito Santo que perderam o controlo por parte da hierarquia da Igreja, quer a nível da diocese quer pelos diversos párocos. Se é verdade que por vezes as festas populares estavam mais próximas dos desígnios para que foram criadas, noutros casos nas mesmas existiam abusos de vária ordem que foram denunciados quer pela comunicação social quer por quem escreveu sobre a temática.

Manuel Gandra, no livro “O Império do divino na Amazónia”, apresenta várias casos em que a hierarquia da Igreja Católica impôs um conjunto de restrições ou mesmo proibições ao longo de vários séculos.

Neste texto, apenas faremos referência a um exemplo por século e em locais diferentes.

A primeira deliberação, datada de 1559, foi das Constituições Sinodais do Bispado de Angra. Entre ouras medidas tomadas foram proibidas “as danças dos foliões no interior dos templos, bem como as cantorias durante as coroações” (Gandra, 2017, p.78).

Em 1699, numa visita a Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, o Dr. Bernardo Estácio determinou que existisse apenas um império por freguesia e que os mordomos deviam ter um “livro de receita e despesa, controlado pelo Ouvidor, para que as esmolas sejam dadas fielmente aos pobres” (Gandra, 2017, p. 86)

Em 1745 são de novo condenados os Impérios das Mulheres, é proibido de se realizar o Império da Senhora da Vida, na freguesia de Ponta Garça e é imposto “que o Império da Misericórdia, em Vila Franca, se faça no dia de Pentecostes e que o de Santo André se realize na 1ª oitava da festa, “para que os padres aproveitassem das esmolas que se tiravam para o dito ministério” (Gandra, 2017, p. 89).

De acordo com Gandra (2017), o Bispo açoriano Dom Frei Estevão de Santa Maria ordenou “que os Coroamentos não tenham lugar para além do Domingo da Trindade, e mais interdita os bailes nas casas onde se encontre a Coroa do Santo Espírito” (p.96).

Em 1959, Dom Manuel Afonso de Carvalho emitiu uma Nota Episcopal que, segundo Gandra (2017) visava “a Evangelização da devoção ao Paracleto, bem como a regularização e regulamentação canónicas coercivas dos Estatutos das Irmandades do Espírito Santo” (p.107). Dois anos depois, o mesmo bispo declarou extintos todos os Impérios que não tinham os seus estatutos canonicamente aprovados, o que acontecia com a esmagadora maioria dos existentes dos Açores.

O jornal Correio dos Açores, de 18 de junho de 1961, relata o caso de seis filarmónicas da ilha Terceira que foram excomungadas pela Câmara Eclesiástica pelo facto de “terem participado em “Coroações do Espírito Santo” a que o Prelado negou carácter religioso por não serem realizadas de acordo com um regulamento cujos termos têm apaixonado a opinião pública”.

Mais recentemente, em 2012, uma paróquia da ilha de São Miguel tentou “disciplinar as Irmandades do Espírito Santo e as Coroações, apresentando um conjunto de regras que poderão fazer algum sentido para os crentes e para quem se revê na organização da Igreja Católica. Assim, de acordo com um conselho pastoral paroquial, foi recomendado que devem ser pessoas adultas a coroar, que “se possível, deverá coroar apenas a coroa da festa ou até 3 coroas”, que haja “decoro no vestir e no agir” de quem vai coroar e que “todos envolvidos na festa deverão ter o culto/cota em dia”.

Por parte do Estado a tentativa de disciplinar ou controlar as festas do Espirito Santo também existiu e continua a acontecer. Gandra (2017, p. 103) refere que em 1911 a república procurou “laicizar as Irmandades”, fazendo delas “associações culturais ao abrigo da Lei de Separação da Igreja e do Estado”.
Mais recentemente, ao mesmo tempo que o Governo passou a cobrar impostos e taxas também passou a apoiar a manutenção ou a construção dos Impérios e Casas do Espírito Santo, a declarar algumas Irmandades como instituições de interesse público e pasme-se a subsidiar algumas irmandades, como se pode constatar através da leitura do extrato de um despacho da Presidência do Governo Regional dos Açores:
“Considerando que é tradição das Festas do Divino Espírito Santo a distribuição de carne, pão, massa e vinho às muitas pessoas carenciadas, originando onerosos encargos que os Impérios têm de suportar, nomeadamente para a compra de gado;
Considerando o facto de os Impérios carecerem de apoio para poderem realizar as suas Festas Tradicionais e, ainda, o pedido oportunamente formulado; … determino a concessão à Organização das Festas do Divino Espírito Santo – Império da …., de € 200,00 (duzentos euros) destinados a apoiar os encargos com a realização das Festas Tradicionais em honra do Divino Espírito Santo, importância que deverá ser processada pela rubrica 04.08.02 – “Transferências Correntes – Famílias - Outras” do Orçamento da Presidência do Governo Regional para 2012.”

As festas do Espírito Santo e os animais
Agostinho da Silva manteve uma relação especial com os animais. Com efeito, embora tivesse uma predileção pelos gatos, que foram seus companheiros ao longo da vida, respeitava todos os animais a ponto de ter optado por um regime alimentar essencialmente vegetariano. Sobre o assunto escreveu Franco (2015): “Na conversa com Herman José, a 10 de Maio de 1990, no ciclo televisivo das “Conversas Vadias”, já ao cair do pano, ele mesmo declarou para todo o Pais “evito comer animal; coitado do bicho”. Há pelo menos 50 anos que evitava!” (p. 291).
Sobre o mesmo assunto, Agostinho da Silva, citado por Borges (2016, p.126) escreveu:
“Na produção animal, deve escolher-se a fonte de proteína que seja ao mesmo tempo a mais barata e a mais adequada a cada Povo, insistindo-se, porém, sempre, no consumo da proteína vegetal equiparável: animal está no mundo para ser nosso companheiro, não nosso escravo e vítima”

Nas festas do Espírito Santo sempre foram abatidos animais, para a sua carne ser usada na alimentação dos organizadores e colaboradores, como os criadores do gado e os pagantes de pensões, mas também para a oferta aos mais pobres. Neste texto não vamos tecer considerações acerca dos abates que hoje penso serem feitos nos matadouros oficiais, mas que no passado ocorriam nos mais variados locais, como, por exemplo, nas margens de uma ribeira, na Ribeira Seca de Vila Franca do Campo.
Uma das práticas que ainda se mantém, pelo menos nalguns impérios, é a do desfile de animais, nomeadamente gueixos, pelas ruas das localidades, que durante a minha infância e juventude ocorria na sexta-feira (a Sexta-Feira dos Gueixos) antes do domingo da festa.
Esta prática tem sido contestada, pois as condições dos arruamentos do passado, que eram de terra, hoje estão alteradas e o risco de os animais escorregarem, caírem e ferirem-se é muito maior. A agravar a situação durante os desfiles são lançados foguetes, cujo ruído perturba os animais habituados ao sossego das pastagens.
Sobre este assunto, a feminista e defensora dos animais Alice Moderno (1867-1946) escreveu no seu jornal, A Folha, o seguinte: “É certamente uma época alegre para o povo; mas quem para a patente são os pobres bois, que são abatidos em grande número, depois de passeados pelas ruas com adornos de flores, o que faz lembrar a época do paganismo”.
Num texto, intitulado Os “Impérios” do Espírito Santo, publicado no Correio dos Açores, no dia 25 de abril de 1937, Eduardo Dias fez uma breve descrição de um Império da freguesia das Furnas. Sobre o sacrifício dos animais, o autor escreveu o seguinte:
“O mordomo, os amigos e a música vão acompanhando, como podem, os irrequietos e floridos condenados à imolação. Feita a volta à imensa e majestosa cratera – O Vale das Furnas – o cortejo regressa às imediações da casa do mordomo.
Começam então os sacrifícios ao ar livre:
O animal, forçado a ajoelhar, recebe entre os chifres a pontilha do improvisado magarefe e logo um novo e enorme golpe entre as patas dianteiras. Enquanto garotos montam sobre os quartos da rês para precipitar a hemorragia, outros acorrem com malgas, tigelões, alguidares e marmitas ao chafariz de sangue”.
Proibida esta prática, a que tivemos a oportunidade de assistir, na freguesia da Ribeira Seca, no concelho de Vila Franca do Campo, nos anos sessenta e setenta do século passado, hoje ainda persiste, pelo menos em algumas ilhas, sobretudo na ilha Terceira, a realização de touradas à corda associadas às festas do Espírito Santo. Segundo Lopes (2003, p.242) na referida ilha, aquelas “são remate certo de todas as festas, quer religiosas que profanas”.
Apesar de contestadas desde sempre, mesmo na ilha Terceira, as touradas à corda foram levadas pela indústria tauromáquica para outras ilhas, inclusive para São Miguel, com a ajuda de governantes, autarcas, comissões de festas religiosas e irmandades do Espírito Santo, onde não há controlo dos dinheiros que deviam ser usados com parcimónia e não para promover o abuso de animais.
Sobre este assunto, o Padre Ricardo Tavares, da paróquia dos Fenais da Luz, na ilha de São Miguel, uma das poucas localidades onde pretenderam associar touradas às Festas religiosas e aos impérios do Espirito Santo, emitiu um comunicado, no dia 25 de julho de 2017, onde afirmou o seguinte:
“A tourada é uma prática sádica, na qual as pessoas se divertem à custa do medo e do pânico do toiro, além de ser uma actividade bárbara, anti-civilizacional e dispendiosa, que queima verbas que podiam muito bem ser canalizadas para uma acção social ou até para o restauro da Igreja.

Infelizmente, a Comissão realizou a indesejada tourada, na qual poucas pessoas participaram. Porém, a Comissão foi demitida pela Diocese, por desobediência aos ditames da Igreja, a este e a outros. E acabam-se 7 anos de barbárie contra animais em nome de Deus!

Enquanto eu for pároco, não haverá lugar para violência contra animais, nem touradas nem bezerradas. Porque, enquanto houver maus-tratos contra animais, haverá sempre violência contra pessoas.”


Bibliografia

Borges, P. (2016). Agostinho da Silva - Uma Antologia Temática e Cronológica. Lisboa: Âncora Editora
Cabral, M., Nunes, M. (1982-1983). Contributos para o estudo das Festividades Populares em Louvor do Divino Espírito Santo no Lugar do Penedo (Colares-Sintra). Sintria, I-II, pp. 803-1028.
Castro, A. (1924). A festa da Pombinha-De como se radicou entre nós o culto do Espírito Santo. Separata do artigo inserto no “Diário dos Açores” de 15 de maio de 1924. 7 pp
Ferreira, E. (1993). A Alma do Povo Micaelense. Vila Franca do Campo: Editorial Ilha Nova-Câmara Municipal de Vila Franca do Campo. 232 pp.
Franco, A. (2015). O estranho colosso. Uma biografia de Agostinho da Silva. Lisboa: Quetzal. 735pp.
Gandra, M. (2017). O império do divino na Amazónia. Rio de Janeiro: Instituto Miukharajj Brasilan & Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica -Cesdies. 468 pp.
Lopes, F. (2003). Notas Etnográficas. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira. 437 pp.
Rodrigues, A. (1983). As festas do Espírito Santo na Ilha de S. Miguel. Arquivo dos Açores, volume XIV, Ponta Delgada.
Silva, A. (1988). Carta Vária. Lisboa: Relógio d´Água. 108 pp.
Silva, A. (1996). A educação de Portugal. Lisboa: Ulmeiro. 78 pp.
Supico. F. (1995). As Escavações, Volume II. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada.



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