quarta-feira, 9 de dezembro de 2020
Aires Jácome Correia, Tolstói e a Educação
Aires Jácome Correia, Tolstói e a Educação
De acordo com vários autores, entre os quais Gustavo Ramus, o escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) ao defender o cristianismo primitivo, que se caracterizava pelo facto de os cristãos viverem à margem do estado romano, praticando a divisão de bens e partilhando alimentos, foi o precursor do anarquismo cristão.
Para poder viver segundo os princípios que adotou, Tolstói fundou, em 1859, uma escola destinada aos filhos dos camponeses. Na referida escola, segundo Ramus, “adotou um sistema de ensino horizontal de livre experimentação, fechado pelo regime czarista alguns anos depois”. Edmond-Marc Lipiansky corrobora as afirmações de Ramus dizendo que na escola criada por Tolstói o único critério da pedagogia era a liberdade e o único método era a experiência.
Tal como escrevemos em texto anterior, Aires Jácome Correia valorizava o ensino de uma profissão desde a mais tenra idade, isto é, defendia que o trabalho manual e o intelectual deviam ser ensinados paralelamente. Sobre a questão do trabalho manual, em carta escrita em outubro de 1887 a Romain Rolland, Tolstói também dava grande importância ao mesmo, tendo a propósito escrito que “na nossa sociedade viciada (na chamada sociedade civilizada) tem de se falar antes de tudo do trabalho manual, porque a falta principal da nossa sociedade foi e continua a ser hoje o desejo de se libertar do trabalho manual e de utilizar, sem o intercâmbio mútuo, o trabalho das classes pobres, ignorantes e deserdadas”.
Aires Jácome Correia escreveu em várias publicações periódicas sobre o tema da instrução/educação, como “O Autonómico” ou a “Revista Pedagógica”. Nesta, manteve durante algum tempo uma rubrica com o título “Educar”, tendo dedicado, no número 202, de 11 de janeiro de 1912, o seu texto a Tolstói.
Logo a iniciar o seu escrito, Aires Jácome Correia recorda que Tolstói foi obrigado a fechar a sua escola devido aos “princípios anárquicos que nela eram mantidos, como liberdade de aprender, de trabalho, de exatidão, de assistência à escola”.
Tolstói, segundo Aires Jácome Correia, respeitava a individualidade de cada criança e defendia que “incutir uma maneira de ver, a nossa vontade, às crianças, é roubar-lhes uma parte da sua individualidade, falseando o seu gosto próprio, a sua apreciação.”
Jácome Correia, depois de ter recordado que Tolstói “deixava as crianças resolver as suas questões conscienciosamente, segundo os seus instintos e os seus temperamentos” e que “não havia programas, os professores eram chamados a ensinar o que sabiam, como as crianças escolhiam o trabalho que preferiam”, escreveu o seguinte:
“Tolstói, quanto ao meu espírito, está na verdade pedagógica, num ambiente de trabalho, desde o momento em que se tenha feito a abstração de tudo quanto não está submetido a esse trabalho e aos meios de o elaborar, as tendências dos indivíduos mais ou menos tarde, modificam-se e adaptam-se, submetendo-se às correntes sugestivas desse ambiente, dirigidas pela vontade imponente do mestre.
Raciocinando sobre o seu princípio do respeito da liberdade individual, chega-se realmente a notar que os factos, as ações, as coisas, que para nós nos parecem fúteis ou inúteis, para uma outra inteligência que as veja e aprecie por uma forma diversa possam por elas ser transformadas em proveito da vida útil e da produtibilidade.”
Aires Jácome Correia, depois de referir que Tolstói se baseou nas ideias libertárias e “na moral de Cristo, como Cristo a pregou e a expôs”, mencionou que se os resultados da escola por ele criada não foram muitos, as suas ideias espalharam-se por toda a parte e os seus livros e panfletos foram bem aceites.
Por último, Aires Jácome Correia menciona o facto de Tolstói ter combatido o progresso, que sobrevaloriza o bem-estar material em detrimento das necessidades morais dos homens e para responder “aos seus desejos rústicos e simples, criou as regras da educação natural”.
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 32304, 10 de dezembro de 2020)
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