sexta-feira, 5 de setembro de 2025

A propósito do jornal do Pico da Pedra

 


A propósito do jornal do Pico da Pedra

Como se está a comemorar o surgimento de um jornal no Pico da Pedra há 50 anos, que originalmente se chamou O Grito do Povo, decidi escrever alguns apontamentos sobre o período em que, em Portugal, houve maior participação das pessoas na vida social das suas terras: os anos de 1974 e 1975.

 

Depois do derrube de uma feroz e longa ditadura que oprimiu o povo português durante quase meio século, o golpe militar de 25 de Abril de 1974 foi saudado pela maioria do povo, que, logo no primeiro dia, não obedeceu ao MFA e veio para as ruas. Nos dias seguintes, a população decidiu tomar nas suas mãos os seus destinos e criou comissões de moradores, comissões de trabalhadores, comissões para resolver problemas com que se defrontavam as suas terras, associações informais de jovens, sindicatos e desalojou as direções fascistas que os dirigiam, fundou cooperativas para, em primeiro lugar, combater a carestia de vida, criou creches, etc.

 

Se é verdade que terão existido alguns “excessos” e manipulações partidárias — aos partidos interessa-lhes, em primeiro lugar, a conquista do poder —, foi no chamado PREC, o período mais democrático da história portuguesa, segundo a historiadora Raquel Varela, que alguns, infelizmente poucos, açorianos decidiram agir, sem intermediários, e contribuir para uma transformação social rumo a uma sociedade em que a democracia não se limitasse apenas ao voto, mas onde houvesse mais justiça e equidade social.

 

A criação de O Grito do Povo foi uma louvável iniciativa da juventude do Pico da Pedra que, através dele, entre outros assuntos, denunciou a prepotência de um padre, o desleixo de uma câmara municipal, a persistente falta de água na freguesia e deu a conhecer iniciativas dos jovens, entre as quais a do Juventude Futebol Clube.

 

Mas talvez a iniciativa que considero de maior importância — e que ainda hoje continua, em parte, viva — foi a da criação de um sindicato de trabalhadores rurais, que por sua vez esteve na fundação de uma cooperativa de consumo.

 

Numa altura em que o número dos assalariados correspondia a 65% da população rural do distrito de Ponta Delgada, e em que recebiam salários de miséria e muitos não tinham trabalho garantido, as gentes do Pico da Pedra foram pioneiras na defesa daquela classe profissional. Assim, a título de exemplo, regista-se uma reunião realizada no Pico da Pedra, a 1 de maio de 1975, com a presença de trabalhadores rurais de Santa Cruz e do Rosário, do Livramento, das Capelas, de São Vicente Ferreira e do Pico da Pedra, e outra, a 29 do mesmo mês, na Junta de Freguesia da Fajã de Baixo, que contou com a presença de “cerca de 50 camponeses representando à volta de 11 freguesias micaelenses”.

 

É bom recordar, numa altura em que neofascistas estão a deitar as garras de fora, que, mesmo depois do derrube da ditadura, os adeptos de Salazar e Caetano não ficaram de braços cruzados. Assim, alguns dos dirigentes dos sindicatos foram intimidados e alguns trabalhadores aconselhados a não aderirem aos mesmos por estarem, pretensamente, ligados ao Partido Comunista. No Pico da Pedra, o presidente do sindicato foi alvo de uma queixa em tribunal, por parte de duas entidades patronais, pelo facto de, segundo os queixosos, ser também sócio do Sindicato dos Estufeiros.

 

Embora com uma vida efémera, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Pico da Pedra teve a iniciativa de criar, já em 1977, a Cooperativa de Consumo do Pico da Pedra, que foi fundada para garantir o acesso a bens essenciais a preços justos e que, embora primeiramente destinada aos seus membros, ainda serve toda a freguesia.

 

Estamos a viver tempos difíceis, em que parte da população não está apetrechada com os meios capazes de distinguir a verdade da mentira; em que alguns políticos ou aspirantes a tal, para caçar votos, dizem o que mais agrada às pessoas; em que, com base em dados falsos, se criam artificialmente inimigos, como os imigrantes ou os mais frágeis socialmente; em que se desvaloriza ou mesmo ignora o conhecimento científico; e em que se insulta quem tem opiniões diferentes, mesmo que fundamentadas. Por isso, é importante a existência de um jornal isento e plural numa freguesia.

 

A Voz Popular pode e deve continuar a ser um exemplo inspirador para outras localidades e um elo entre gerações, ligando os seus habitantes atuais a todos os que foram obrigados a procurar uma vida melhor noutras paragens.

 

Pico da Pedra, 10 de agosto de 2025

Teófilo Braga

(Publicado em “Voz Popular”, 213, agosto de 2023)

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