O MEU PREC: Do 25 de
abril de 1974 ao 25 de novembro de 1975
Sempre
que se fala no dia 25 de Abril de 1974, vem-me à memória o facto de ter tomado
conhecimento do mesmo no Liceu Nacional de Ponta Delgada. Com efeito, lembro-me
de estar numa aula de Geografia lecionada pela professora Zilda França quando
chegou à sala a professora de Matemática Conceição Garcia e as duas estiveram a
ouvir na rádio as notícias.
A
25 de Abril de 1974 era presidente da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo
o professor primário, Orlando Augusto Borges Brandão que durante alguns anos
foi presidente da Comissão Concelhia da Ação Nacional Popular, organização
política que resultou da União Nacional, e, no dizer de Manuel Barbosa,
“vistoso ornamento da Legião Portuguesa”, organização criada, em 1936, para “defender o património espiritual da Nação
e combater a ameaça comunista e o anarquismo".
Como seria de esperar, com o derrube de Marcelo
Caetano, os adeptos do Estado Novo, os fascistas, não se renderam e nalguns
casos resistiram o mais que lhes foi possível para se manterem nos cargos que
antes ocupavam. Por outro lado, os adversários do estado novo, os democratas,
começaram a organizar-se e a mobilizar as pessoas com vista à substituição de
quem ocupava os vários cargos por quem havia resistido à ditadura de Salazar e
Caetano.
Com quase 17 anos de idade, sem nenhuma formação
política a não ser as aulas de Organização Política e Administrativa da Nação
que estavam a ser ministradas pelo Dr. Álvaro Dâmaso, no Liceu Nacional de
Ponta Delgada, fui assistindo com atenção ao que se passava através da
transmissão das informações de boca a boca e participando de forma passiva em
alguns acontecimentos, como ocorreu na primeira manifestação do Dia do
Trabalhador em Vila Franca do Campo e no processo de substituição dos
“inquilinos” da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo.
No final de maio de 1974 andou a recolher
assinaturas, em Vila Franca do Campo, um abaixo-assinado, que para além de
contestar o aumento da taxa da água solicitava a destituição da administração
municipal. Este abaixo-assinado que teve 1056 subscritores foi enviado à
comissão do Movimento Democrático Português de Ponta Delgada que por sua vez
enviou um telegrama ao Ministério da Administração Interna dando conhecimento
do conteúdo do mesmo.
Os adeptos do antigo regime não permaneceram
quietos e começaram a pressionar algumas pessoas para reagir à iniciativa dos
democratas, tendo um grupo de que faziam parte Eduardo Manuel Mendes Araújo,
Eduíno Manuel Simas Couto, José Lopes e Manuel da Costa Braga enviado uma
Declaração aos jornais onde declararam que haviam assinado um texto a pedir a
redução da taxa da água e não a solicitar a demissão da Edilidade de que não
têm razão de queixa.
Na mesma altura, o professor Orlando Brandão
reagiu violentamente ao abaixo-assinado, tendo numa nota datada de 5 de Junho
de 1974 afirmado que o mesmo era “um documento reconhecidamente falso, onde até
crianças inocentes ainda em idade escolar, irresponsavelmente apuseram a sua
assinatura” e aproveitado a ocasião para denunciar o facto da Comissão do
Movimento Democrático estar a “ser manobrada pelos fascistas que forjaram o
abaixo-assinado, um dos quais foi presidente da Comissão de Freguesia de São Miguel
de Vila Franca do Campo, até ao dia 25 de Abril e em cuja casa a Comissão de
Concelho da extinta ANP se reuniu e planeou a ação a desenvolver”.
A 11 de Junho do mesmo ano, pelas 10 horas,
algumas centenas de pessoas reuniram-se junto à Câmara Municipal de Vila Franca
do Campo e elegeram uma comissão administrativa[1]
composta por Raul Eduardo Vale Raposo Borges, licenciado em direito, Armando
Botelho Henrique, lavrador, Alfredo Moniz Gago da Câmara, industrial, João José
Sardinha, lavrador, e Elias Pimentel Costa, comerciante.
De acordo com a ata da eleição, o povo de Vila
Franca reuniu em frente aos Paços do Concelho e de forma “espontânea e
conscientemente manifestou o seu desejo aberto e claro de deixar de ter na sua
administração municipal as pessoas que a executavam há muito tempo”.
Se é crível que a população andava farta de
autoritarismo, ninguém acredita que a reunião tenha ocorrido de forma
espontânea e que os nomes dos eleitos tenham caído do céu. À distância dos
acontecimentos, arrisco-me a dizer que a democracia estava a dar os primeiros
passos atrás.
Não satisfeitos com o rumo dos acontecimentos, os
partidários do antigo regime convocaram uma concentração para o dia 14 de junho
uma nova reunião para o mesmo local com vista à escolha de uma outra Comissão
Administrativa para a Câmara Municipal, a qual não resultou e transformou-se
num “assalto” ao edifício da Câmara Municipal e na queima de alguns documentos.
Assisti à eleição da comissão administrativa e ao
“assalto” à Câmara junto ao muro do jardim, em frente ao estabelecimento
comercial “A Construtora”, tendo presenciado a situação caricata por que passou
o Dr. Raúl Borges que, por não querer ser levado em “triunfo” para a Câmara
Municipal, encontrava-se, aos ombros de duas pessoas, agarrado aos ramos de uma
árvore.
A
seguir ao 25 de Abril comecei a tentar informar-me o máximo possível sobre as
mais diversas ideologias políticas e comecei a ler tudo o que me chegava às
mãos. Lembro-me de um dos primeiros livros que li foi comprado na Papelaria
Avenida e tinha por título “Você pode confiar nos comunistas (…eles são
comunistas mesmo!)” da autoria do físico e ativista político australiano Fred
Schwarz, que fundou a Cruzada Anticomunista Cristã. A par dos livros que ia
comprando, passei a ler literatura diversa emprestada por um grupo de jovens estudantes
que tinham familiares ligados a diversas organizações da extrema esquerda no
continente português.
Entretanto
em Vila Franca do Campo, o PS-Partido Socialista e o PCP-Partido Comunista
Português abriram sedes e acabei por, após uma ou duas conversas com a funcionária
do PCP, Regina Martins, aderir formalmente à UEC- União dos Estudantes
Comunistas[2].
Como
a UEC não estava organizada em Vila Franca do Campo, integrei-me numa célula da
mesma constituída por alunos do Liceu Nacional de Ponta Delgada, tendo, se não
me falha a memória, participado em duas reuniões na sede do PCP localizada na
Rua da Misericórdia, em Ponta Delgada.
Depois do Governo ter anunciado a 27 de outubro de 1974 as
Campanhas de Dinamização Cultural, com o objetivo de "cumprir
integralmente o programa do MFA e colocar as Forças Armadas ao serviço de um
projeto de desenvolvimento do Povo Português" participei, em data que não
me recordo, em regime de voluntariado, em sessões de formação dadas por
militares vindos do continente e destinadas a aprendermos o método de Paulo
Freire com vista a ensinarmos a ler a pessoas que não o sabiam.
As aulas eram ministradas numa sala por cima de uma Padaria do Sr.
Alfredo Gago da Câmara que ficava na Rua Teófilo Braga e lembro-me de que
depois de algumas desistências terem aprendido com sucesso as primeiras letras
o Sr. Isidoro, que era tratador de gado bovino e o Sr. João de Lima Carvalho,
dono de uma mercearia.
Ao contrário do que alguns detratores apregoam, nunca perguntamos
às pessoas a que partidos pertenciam ou que ideologias políticas ou religiosas
seguiam. O nosso objetivo foi unicamente que aprendessem a ler.
Para
além da minha ligação com os meus colegas ligados à extrema-esquerda
marxista-leninista (maoista), da minha militância formal na UEC, tinha fortes
amizades com pessoas ligadas ao MES- Movimento de Esquerda Socialista[3] de tal modo que nas
eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas a 25 de Abril de 1975,
votei neste partido.
Nas
eleições para a Assembleia Constituinte, o MES candidatou-se por Angra do
Heroísmo, tendo apresentado como candidatos Alberto Azevedo, estudante, e João
Fernandes, trabalhador numa lota de peixe. Por Ponta Delgada, foram candidatos:
Eduardo Pontes, empregado de escritório, Jorge Costa Dias, funcionário público
e José Eduardo Martins Mota, engenheiro.
Dos
seus principais dirigentes destacou-se Eduardo Pontes que foi um dos poucos
resistentes, nos Açores, à ditadura de Salazar e Caetano. Aquele foi eleito no Congresso,
realizado em 1976, para o Comité Central.
Destas
eleições para a Constituinte recordo a entreajuda que havia entre todos os partidos
que se posicionavam à esquerda, de tal modo que eu colei cartazes de Partido
Socialista, do Movimento de Esquerda Socialista e do Partido Comunista
Português. De igual modo sempre que a algum dos grupos faltava algo,
ajudávamo-nos uns aos outros, quer emprestando as escadas, cedendo cola ou
mesmo ajudando a colar os cartazes.
Um
episódio de falta de fair-play ocorrido na campanha eleitoral para a Assembleia
Constituinte marcou-me para sempre de tal modo que de vez em quando me lembro
dele. Assim, depois de um grupo de pessoas, em que eu estava, penso que
acompanhado pelo Eduardo Lopes, pelo César “Prisca” e pelo António Gomes, percorrido
uma zona considerável de Vila Franca, desde o centro da Vila, passando pelas
Hortas e toda a Ribeira Seca, a colar cartazes, transportando, a pé, uma pesada
escada de madeira, descobrimos que tínhamos sido seguidos por um pau mandado a
mando de alguém do Partido Popular Democrata e que o mesmo havia arrancado
todos os cartazes que havíamos colado.
Para
além da minha participação na campanha eleitoral apoiando toda a esquerda,
também ajudei o meu pai que ficou responsável pelo recenseamento de todos os
habitantes da Ribeira Seca. Assim, foi em minha casa que se recensearam todas
as pessoas do então lugar da Ribeira Seca, hoje freguesia, e eu como
frequentava o liceu e tinha mais facilidade do que meu pai para o preenchimento
de papéis acabei por ser responsável pelo recenseamento da maioria dos meus
conterrâneos.
A partir do 6 de junho de 1975 fui-me
afastando da UEC e do PCP e aproximei-me mais do grupo que em Ponta Delgada
editava o jornal “Luta Pela Democracia Popular” que, se não estou enganado,
mantinha ligações com a OCMLP- Organização Comunista Marxista Leninista
Portuguesa[4], pois o grupo distribuía o
jornal daquela organização “O Grito do Povo”.
Para
além de “O Grito do Povo”, aquele grupo distribuía várias brochuras de duas
coleções, Textos Marxistas, da OCMLP, e das Edições Causa Operária[5] , “A Classe Operária”,
órgão central do Partido Comunista do Brasil e a revista Spartacus cujo primeiro
número foi impresso na Suécia, mas que teve uma segunda edição em setembro de
1974, com uma tiragem de 10 000 exemplares. Esta revista embora se afirmasse
independente, segundo Pacheco Pereira[6], tinha origem na OCMLP e
“destinava-se a ser a revista cultural contraparte da Seara Vermelha do PCP
(ML)”.
Embora
os atos de violência tenham começado antes, foi, de acordo com Barbosa (1978),
a partir dos últimos dias de maio de 1975 que começaram “os assaltos e
destruições a sedes e centros de trabalho dos partidos progressistas” (p. 75).
Assim, a 20 de agosto foi assaltada a sede do PCP de Vila Franca do Campo
essencialmente por energúmenos idos de Ponta Delgada e por ignorantes
arrebanhados pelos caciques locais em várias freguesias do concelho,
nomeadamente em Ponta Garça.
Lembro
de estar em minha casa, na rua do Jogo, e passarem nas ruas aos gritos e a
espumar raiva e vinho de cheiro bandos de ignorantes oriundos de Ponta Graça
armados de foices, varapaus e correntes utilizadas para amarar o gado.
Desconheço se foram os mesmos ou outros que antes estiveram ao serviço dos
chamados democratas.
[1]
Para além de Raúl Bordes que foi presidente da Comissão Administrativa em 1974
e 1975, também foram presidentes de comissões administrativas da Câmara de Vila
Franca do Campo, José Maria Teixeira Dias, em 1975, e José Altino de Melo, em
1975 e 1976.
[2] A União
dos Estudantes Comunistas
(UEC) foi criada, em 1972, pelo Partido Comunista Português para agrupar os jovens estudantes comunistas portugueses. A
sua dirigente mais conhecida foi Zita Seabra.
[3]
O Movimento de Esquerda Socialista (MES) surgiu imediatamente a seguir
ao 25 de Abril de 1974 e dissolveu-se em Novembro de 1981,
[4] Organização criada em 1973 tendo formado em
1975 a Frente Eleitoral dos Comunistas
(marxistas-leninistas) – FEC (ml) a qual concorreu às eleições para a Assembleia
Constituinte.
[5]
A Causa Operária foi
um Jornal Comunista que surgiu nas bancas em setembro de 1974, como órgão oficioso
da Comissão Central dos Comités
Comunistas Revolucionários Marxistas-Leninistas. Foi dirigido, a
título interino, por Acácio Barreiros, que foi deputado da
Assembleia da República pela UDP e mais tarde pelo Partido Socialista.
[6]
José Pacheco Pereira é
professor no ISCTE e foi membro de um dos grupos marxistas-leninistas de 1968 a
1975. No seu livro “As Armas de Papel” editado em 2013, pela Temas e Debates- Círculo
de Leitores, apresenta uma listagem de várias publicações periódicas
clandestinas, algumas das quais continuaram a publicar-se depois de 25 de Abril
de 1974.
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