domingo, 30 de janeiro de 2022

O JOVEM ANARQUISTA JOÃO ANGLIN


 



O JOVEM ANARQUISTA JOÃO ANGLIN

 

 

O gosto pela leitura, em geral, nomeadamente de quase tudo ao que aos Açores diz respeito, fez com que há alguns anos, possivelmente em 1996, tenha chegado às minhas mãos uma separata da revista “Insulana”[1] dedicada ao jornal de inspiração anarquista “Vida Nova”[2], de Ponta Delgada, que terei lido e não dado muita importância.

 

Em 2010, no âmbito do meu envolvimento na defesa dos animais, ao pesquisar sobre Alice Moderno, precursora dos atuais movimentos de defesa do ambiente e amiga dos animais, deparei-me com um texto de João Anglin, no jornal A Folha[3], que primeiro havia sido publicado no “Vida Nova”.

 

A leitura, quase simultânea, da História dos Açores, de Carlos Melo Bento, onde o Dr. João Anglin era apresentado como “professor liceal de grande mérito pedagógico, legionário nacionalista e um dos importantes esteios do regime” e do livro “A oposição ao Salazarismo em São Miguel e em Outras Ilhas Açorianas (1950-1974) ” onde a dado passo se pode ler que o Liceu Antero de Quental, em pleno regime salazarista conservava sob a gestão do Dr. João Anglin “significativos traços democráticos” e que aquele “estava longe de ser uma figura autoritária e era coadjuvado, nas suas funções, por professores de tradições democráticas, como o meu pai[4] e o Dr. João Bernardo Rodrigues.” despertou-me a curiosidade em conhecer melhor a personalidade do Dr. João Anglin que foi durante muitos anos reitor do Liceu Antero de Quental, escola onde frequentei os antigos 6º e 7º anos do Ensino Liceal, hoje correspondentes ao 10º e 11º anos de escolaridade.

 

A seguir, com vista a conhecer melhor a vida e a obra do Dr. João Anglin, o primeiro passo foi, na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, consultar todos os exemplares disponíveis do “Vida Nova”, fotografar todos os textos da sua autoria e depois lê-los. Terminada, digamos, esta primeira fase, fui procurar, na minha pequena biblioteca particular, todas as publicações sobre ele ou da sua autoria.

 

Através da investigação, que fiz até ao presente, pode-se concluir que, na sua adolescência, ele foi um militante libertário, já que, de acordo com João Freire,  não se limitou a “uma adesão intelectual à doutrina”, mas teve uma actividade de relevo “no sentido de difundir e alargar o raio de influência social” do ideal anarquista, como o demonstram os textos que publicou no mencionado jornal.

 

Nos parágrafos seguintes apresento a opinião do jovem João Anglin durante o período que vai de 8 de junho de 1908 a 22 de abril de 1911.

 

O 1º de Maio, data comemorada em Portugal desde 1890, foi tema usado por João Anglin em dois textos. Para além da denúncia da situação degradante em que viviam (e vivem) os mais explorados, nomeadamente os operários, há nos textos uma mensagem de denúncia do capitalismo e da transformação da data, por alguns, em dia de “festas e patuscadas” e uma palavra de esperança numa revolução que “se não fará esperar muito”. Só quando tal acontecer, escrevia Anglin, aquele dia deixará “de ser um dia de protesto e de luta para ser um dia de festa e regozijo universais”.

 

O combate aos vícios, como o tabagismo e o alcoolismo, foi uma das batalhas em que se envolverem muitos anarquistas. A propósito do alcoolismo, João Anglin lançou o seguinte apelo:

 

“Operários micaelenses! Abandonai a imunda taberna, esse antro de penúrias e desgraças; deixai de frequentar essas nojentas espeluncas que não vos prestam outro serviço senão o de arruinar a vossa saúde e consequentemente a de vossos filhos; renunciai a tudo isso e trabalhai com ardor pela causa da vossa emancipação que é uma causa justa, equitativa e racional”.

 

O Vida Nova, pela pena de João Anglin, foi também um dos pioneiros, nos Açores, na chamada de atenção para os maus tratos infligidos aos animais domésticos, nomeadamente aos animais de tiro (bois, cavalos e burros). Os seus apelos, que eram simultaneamente denúncias pelo facto das palavras não se traduzirem em atos, foram importantes, ou mesmo decisivos, no sentido da criação da Sociedade Micaelense Protectora dos Animais, que viria a ser legalizada a 13 de Setembro de 1911, mas que começou a ter um funcionamento efetivo com a chegada à sua presidência, em 1914, de Alice Moderno.

 

O antimilitarismo foi, também, um assunto que não esteve ausente das preocupações e textos de João Anglin e do “Vida Nova” à semelhança do que acontecia noutros jornais nacionais que publicavam cartas/apelos aos soldados ou cartas destes a descrever a vida nos quartéis. João Anglin, para além considerar os quartéis como “focos de imoralidade e ociosidade”, escreveu que com a incorporação no exército perdiam-se braços produtores (na agricultura) e quem beneficiava era “o Estado e toda essa corte de satélites que em torno dele adejam, porque assim é mais um autómato a servi-los, mais uma lança a defendê-los”.

 

A influência da Igreja Católica na sociedade micaelense foi um dos alvos de João Anglin como se pode confirmar através da leitura de alguns dos seus textos, nomeadamente os que polemizavam com o jornal “São Miguel” e o intitulado “Miséria”, escrito em defesa do contramestre da banda regional e de outros militares que foram detidos por não se terem confessado. Neste texto, para além da denúncia do militarismo, o autor, tal como outros anarquistas, mais do que combater os fundamentos da religião, aponta as suas baterias para os “ministros” que corrompem “as sublimes doutrinas do fundador do Cristianismo”.

 

A leitura atenta do que escreveu João Anglin sobre a igreja e a religião leva-nos a concluir que o seu anticlericalismo está associado à ligação existente, segundo os anarquistas, entre o clero e a sua oposição ao avanço da ciência.

 

Na maioria dos textos de João Anglin a educação e a instrução são os temas principais. Segundo ele, a sociedade retrógrada em que vivia só poderia ser destruída por meio da instrução que segundo ele é:

 

 “O único guia seguro que dirige os povos pela estrada que conduz à civilização; ela é também o meio eficaz para as massas proletárias se libertarem do jugo que lhes impõe a burguesia.

Só por meio de uma instrução baseada nos princípios da justiça e do amor, é que o povo compreenderá os seus direitos e gritará bem alto: Queremos liberdade.”

 

É por estar convicto de que, como escreveu E. Valladares, “as pessoas educadas para a liberdade e igualdade enxergariam o mundo a partir de uma óptica, bastante distinta daquela filtrada pela ideologia que justificava a dominação e a exploração” que João Anglin toma partido por Francisco Ferrer e Guardia, criador da Escola Moderna pois, segundo ele, nas Escolas Racionalistas “o ensino é baseado unicamente na razão, havendo da parte dos professores o máximo cuidado em não inculcar às crianças ideias que a ciência rejeita e a razão reprova. D’est’arte em lugar de escravos submissos as Escolas Racionalistas formavam homens rebeldes e conscientes, fortemente preparados para a luta contra a tirania”.

 

Contrariamente ao propalado pelos três grandes inimigos do anarquismo, o Estado, a Religião e o Capital, a ação dos anarquistas ao longo dos tempos tem privilegiado a propaganda e a violência só foi usada por correntes minoritárias ou por indivíduos isolados. De acordo com João Freire os anarquistas “identificando no estado, na propriedade privada açambarcada, no militarismo, no fanatismo religioso ou patriótico, etc., formas permanentes de violência, e desejando que esta situação cessasse - cessando com ela também a violência - não viam outro meio senão o uso de uma outra violência, esta justa, legítima e necessária, para atingir tão altruísta e benfazejo fim.”

 

Em muitos dos textos escritos por João Anglin há um apelo contínuo à instrução e educação e só esporadicamente surgem palavras apoiando a necessidade do uso da violência, de que é exemplo o seguinte extrato:

 

Multidões de famintos, cobertos de andrajos que vos afundais no lodaçal da miséria, reflecti na vossa situação desesperada, compenetrai-vos dos direitos que vos assistem, acordai da apatia em que até aqui tendes permanecido e levantai-vos impetuosamente, revolucionariamente, destruindo os males que vos oprimem, exterminando os vampiros que vos atormentam”.

 

A citação referida, está inserida no texto intitulado “O proletariado universal” que começa com um extrato de William Godwin. Ao escrever o mencionado texto João Anglin ter-se-á inspirado naquele autor ou no texto que abaixo se transcreve de Eça de Queirós:

 

“As revoluções não são factos que se aplaudam ou se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal de que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade.

Decerto que os horrores da revolução são medonhos, decerto que tudo o que é vital nas sociedades, a família, o trabalho, a educação, sofrem dolorosamente com a passagem dessa trovoada humana. Mas as misérias que se sofrem com as opressões, com os maus regímenes, com as tiranias, são maiores ainda.

……

As desgraças das revoluções são dolorosas fatalidades, as desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias.”

             

Através da leitura dos textos da autoria de João Anglin, com aproximadamente cem anos, pode-se constatar que tanto a nível regional como a nível mundial tanto e tão pouco se alterou pelo que ainda, ao contrário do que ele dava a entender, está muito longe e é tortuoso e íngreme o caminho para uma sociedade mais justa, fraterna e pacífica. Mas, tal como escreveu Luce Fabbri:

 

 “É mais importante o caminho – até à anarquia -, do que a meta – porque à meta não se chega nunca e, em contrapartida, o caminho é o concreto. É muito importante que o caminho se torne coerente com a finalidade, pois é a única coisa palpável que temos. Se abandonamos o princípio como forma de chegar mais rápido à meta, suicidamo-nos”[5]

 

 

 

Pico da Pedra, 14 de março de 2021

 

 

 

T. Braga

 

 

Alguma Bibliografia

 

Freire, J. (1992). Anarquistas e operários. Ideologia, ofício e práticas sociais: o anarquismo e o operariado em Portugal, 1900-1940. Porto: Edições Afrontamento.

Freire, J. (2009). De onde vem a violência. A Ideia nº 66, pp. 3-9.

Queirós, E. (1979). Primeiro de Maio. Lisboa: O Jornal.

Valladares, E. (2000). Anarquismo e Anticlericalismo. São Paulo: Editora Imaginário, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Libertários, São Paulo: Nu-Sol.

 

 

(A Ideia, 94/95/96, outono de 2021)



[1] Órgão do Instituto Cultural de Ponta Delgada, publica-se desde 1944.

 

[2] O Jornal Vida Nova publicou-se, quinzenalmente, em Ponta Delgada entre 1908 e 1912 e intitulava-se de “órgão do operariado micaelense”. Foi seu diretor Francisco Soares Silva, proprietário de um atelier de pintura decorativa. Existe um trabalho sobre o jornal, datado de 1995, realizado no âmbito do Seminário “História Económica e Social Contemporânea”, da Universidade Lusófona, da autoria de Licínia Correia, que foi publicado, em 1996, na Revista “INSVLANA”, vol. LII.

 

[3] Jornal criado por Alice Moderno. Publicou-se, em Ponta Delgada, entre 1902 e1917.

 

[4] Dr. Lúcio Miranda, professor de matemática, pai de Sacuntala de Miranda e casado com D. Fedora Serpa de Miranda. Faleceu em Londres, onde se encontrava exilado.

[5] Utopia, nº 6, p. 82

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