O JOVEM ANARQUISTA JOÃO ANGLIN
O gosto pela
leitura, em geral, nomeadamente de quase tudo ao que aos Açores diz respeito,
fez com que há alguns anos, possivelmente em 1996, tenha chegado às minhas mãos
uma separata da revista “Insulana”[1]
dedicada ao jornal de inspiração anarquista “Vida Nova”[2],
de Ponta Delgada, que terei lido e não dado muita importância.
Em 2010, no
âmbito do meu envolvimento na defesa dos animais, ao pesquisar sobre Alice
Moderno, precursora dos atuais movimentos de defesa do ambiente e amiga dos
animais, deparei-me com um texto de João Anglin, no jornal A Folha[3],
que primeiro havia sido publicado no “Vida Nova”.
A leitura, quase
simultânea, da História dos Açores, de Carlos Melo Bento, onde o Dr. João
Anglin era apresentado como “professor liceal de grande mérito pedagógico,
legionário nacionalista e um dos importantes esteios do regime” e do livro “A
oposição ao Salazarismo em São Miguel e em Outras Ilhas Açorianas (1950-1974) ”
onde a dado passo se pode ler que o Liceu Antero de Quental, em pleno regime
salazarista conservava sob a gestão do Dr. João Anglin “significativos traços
democráticos” e que aquele “estava longe de ser uma figura autoritária e era
coadjuvado, nas suas funções, por professores de tradições democráticas, como o
meu pai[4]
e o Dr. João Bernardo Rodrigues.” despertou-me a curiosidade em conhecer melhor
a personalidade do Dr. João Anglin que foi durante muitos anos reitor do Liceu
Antero de Quental, escola onde frequentei os antigos 6º e 7º anos do Ensino
Liceal, hoje correspondentes ao 10º e 11º anos de escolaridade.
A seguir, com
vista a conhecer melhor a vida e a obra do Dr. João Anglin, o primeiro passo
foi, na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, consultar todos os exemplares
disponíveis do “Vida Nova”, fotografar todos os textos da sua autoria e depois
lê-los. Terminada, digamos, esta primeira fase, fui procurar, na minha pequena
biblioteca particular, todas as publicações sobre ele ou da sua autoria.
Através da
investigação, que fiz até ao presente, pode-se concluir que, na sua
adolescência, ele foi um militante libertário, já que, de acordo com João
Freire, não se limitou a “uma adesão
intelectual à doutrina”, mas teve uma actividade de relevo “no sentido de
difundir e alargar o raio de influência social” do ideal anarquista, como o
demonstram os textos que publicou no mencionado jornal.
Nos parágrafos
seguintes apresento a opinião do jovem João Anglin durante o período que vai de
8 de junho de 1908 a 22 de abril de 1911.
O 1º de Maio,
data comemorada em Portugal desde 1890, foi tema usado por João Anglin em dois
textos. Para além da denúncia da situação degradante em que viviam (e vivem) os
mais explorados, nomeadamente os operários, há nos textos uma mensagem de
denúncia do capitalismo e da transformação da data, por alguns, em dia de
“festas e patuscadas” e uma palavra de esperança numa revolução que “se não
fará esperar muito”. Só quando tal acontecer, escrevia Anglin, aquele dia
deixará “de ser um dia de protesto e de luta para ser um dia de festa e
regozijo universais”.
O combate aos
vícios, como o tabagismo e o alcoolismo, foi uma das batalhas em que se
envolverem muitos anarquistas. A propósito do alcoolismo, João Anglin lançou o
seguinte apelo:
“Operários micaelenses! Abandonai a
imunda taberna, esse antro de penúrias e desgraças; deixai de frequentar essas
nojentas espeluncas que não vos prestam outro serviço senão o de arruinar a
vossa saúde e consequentemente a de vossos filhos; renunciai a tudo isso e
trabalhai com ardor pela causa da vossa emancipação que é uma causa justa,
equitativa e racional”.
O Vida Nova,
pela pena de João Anglin, foi também um dos pioneiros, nos Açores, na chamada
de atenção para os maus tratos infligidos aos animais domésticos, nomeadamente
aos animais de tiro (bois, cavalos e burros). Os seus apelos, que eram
simultaneamente denúncias pelo facto das palavras não se traduzirem em atos,
foram importantes, ou mesmo decisivos, no sentido da criação da Sociedade
Micaelense Protectora dos Animais, que viria a ser legalizada a 13 de Setembro
de 1911, mas que começou a ter um funcionamento efetivo com a chegada à sua
presidência, em 1914, de Alice Moderno.
O antimilitarismo
foi, também, um assunto que não esteve ausente das preocupações e textos de
João Anglin e do “Vida Nova” à semelhança do que acontecia noutros jornais
nacionais que publicavam cartas/apelos aos soldados ou cartas destes a
descrever a vida nos quartéis. João Anglin, para além considerar os quartéis
como “focos de imoralidade e ociosidade”, escreveu que com a incorporação no
exército perdiam-se braços produtores (na agricultura) e quem beneficiava era “o
Estado e toda essa corte de satélites
que em torno dele adejam, porque assim é mais um autómato a servi-los, mais uma
lança a defendê-los”.
A influência da
Igreja Católica na sociedade micaelense foi um dos alvos de João Anglin como se
pode confirmar através da leitura de alguns dos seus textos, nomeadamente os
que polemizavam com o jornal “São Miguel” e o intitulado “Miséria”, escrito em
defesa do contramestre da banda regional e de outros militares que foram
detidos por não se terem confessado. Neste texto, para além da denúncia do
militarismo, o autor, tal como outros anarquistas, mais do que combater os fundamentos
da religião, aponta as suas baterias para os “ministros” que corrompem “as
sublimes doutrinas do fundador do Cristianismo”.
A leitura atenta
do que escreveu João Anglin sobre a igreja e a religião leva-nos a concluir que
o seu anticlericalismo está associado à ligação existente, segundo os
anarquistas, entre o clero e a sua oposição ao avanço da ciência.
Na maioria dos
textos de João Anglin a educação e a instrução são os temas principais. Segundo
ele, a sociedade retrógrada em que vivia só poderia ser destruída por meio da
instrução que segundo ele é:
“O único guia seguro que dirige os povos pela estrada que conduz à
civilização; ela é também o meio eficaz para as massas proletárias se
libertarem do jugo que lhes impõe a burguesia.
Só por meio de uma instrução
baseada nos princípios da justiça e do amor, é que o povo compreenderá os seus
direitos e gritará bem alto: Queremos liberdade.”
É por estar
convicto de que, como escreveu E. Valladares, “as pessoas educadas para a
liberdade e igualdade enxergariam o mundo a partir de uma óptica, bastante
distinta daquela filtrada pela ideologia que justificava a dominação e a
exploração” que João Anglin toma partido por Francisco Ferrer e Guardia, criador
da Escola Moderna pois, segundo ele, nas Escolas Racionalistas “o ensino é
baseado unicamente na razão, havendo da parte dos professores o máximo cuidado
em não inculcar às crianças ideias que a ciência rejeita e a razão reprova. D’est’arte
em lugar de escravos submissos as Escolas Racionalistas formavam homens
rebeldes e conscientes, fortemente preparados para a luta contra a tirania”.
Contrariamente
ao propalado pelos três grandes inimigos do anarquismo, o Estado, a Religião e
o Capital, a ação dos anarquistas ao longo dos tempos tem privilegiado a
propaganda e a violência só foi usada por correntes minoritárias ou por
indivíduos isolados. De acordo com João Freire os anarquistas “identificando no
estado, na propriedade privada açambarcada, no militarismo, no fanatismo
religioso ou patriótico, etc., formas permanentes de violência, e desejando que
esta situação cessasse - cessando com ela também a violência - não viam outro
meio senão o uso de uma outra violência, esta justa, legítima e necessária,
para atingir tão altruísta e benfazejo fim.”
Em muitos dos
textos escritos por João Anglin há um apelo contínuo à instrução e educação e
só esporadicamente surgem palavras apoiando a necessidade do uso da violência,
de que é exemplo o seguinte extrato:
“Multidões de famintos, cobertos de
andrajos que vos afundais no lodaçal da miséria, reflecti na vossa situação
desesperada, compenetrai-vos dos direitos que vos assistem, acordai da apatia
em que até aqui tendes permanecido e levantai-vos impetuosamente, revolucionariamente,
destruindo os males que vos oprimem, exterminando os vampiros que vos
atormentam”.
A citação
referida, está inserida no texto intitulado “O proletariado universal” que
começa com um extrato de William Godwin. Ao escrever o mencionado texto João
Anglin ter-se-á inspirado naquele autor ou no texto que abaixo se transcreve de
Eça de Queirós:
“As revoluções não são factos que
se aplaudam ou se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou
condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que
vêm é sinal de que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito,
mais uma felicidade.
Decerto que os horrores da
revolução são medonhos, decerto que tudo o que é vital nas sociedades, a
família, o trabalho, a educação, sofrem dolorosamente com a passagem dessa
trovoada humana. Mas as misérias que se sofrem com as opressões, com os maus
regímenes, com as tiranias, são maiores ainda.
……
As desgraças das revoluções são
dolorosas fatalidades, as desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias.”
Através da
leitura dos textos da autoria de João Anglin, com aproximadamente cem anos,
pode-se constatar que tanto a nível regional como a nível mundial tanto e tão
pouco se alterou pelo que ainda, ao contrário do que ele dava a entender, está
muito longe e é tortuoso e íngreme o caminho para uma sociedade mais justa, fraterna
e pacífica. Mas, tal como escreveu Luce Fabbri:
“É mais importante o caminho – até à anarquia
-, do que a meta – porque à meta não se chega nunca e, em contrapartida, o
caminho é o concreto. É muito importante que o caminho se torne coerente com a
finalidade, pois é a única coisa palpável que temos. Se abandonamos o princípio
como forma de chegar mais rápido à meta, suicidamo-nos”[5]
Pico
da Pedra, 14 de março de 2021
T. Braga
Alguma Bibliografia
Freire, J. (1992). Anarquistas
e operários. Ideologia, ofício e práticas sociais: o anarquismo e o operariado
em Portugal, 1900-1940. Porto: Edições Afrontamento.
Freire, J. (2009). De onde vem a violência. A Ideia nº 66, pp. 3-9.
Queirós, E. (1979). Primeiro de Maio. Lisboa: O Jornal.
Valladares, E. (2000). Anarquismo e Anticlericalismo. São Paulo: Editora Imaginário, Rio
de Janeiro: Instituto de Estudos Libertários, São Paulo: Nu-Sol.
(A Ideia, 94/95/96, outono
de 2021)
[1] Órgão do Instituto Cultural de Ponta Delgada, publica-se desde 1944.
[2] O Jornal Vida Nova publicou-se, quinzenalmente, em
Ponta Delgada entre 1908 e 1912 e intitulava-se de “órgão do operariado
micaelense”. Foi seu diretor Francisco Soares Silva, proprietário de um atelier
de pintura decorativa. Existe um trabalho sobre o jornal, datado de 1995,
realizado no âmbito do Seminário “História Económica e Social Contemporânea”,
da Universidade Lusófona, da autoria de Licínia Correia, que foi publicado, em
1996, na Revista “INSVLANA”, vol. LII.
[3] Jornal
criado por Alice Moderno.
Publicou-se, em Ponta Delgada, entre 1902 e1917.
[4] Dr. Lúcio Miranda, professor de matemática, pai de
Sacuntala de Miranda e casado com D. Fedora Serpa de Miranda. Faleceu em
Londres, onde se encontrava exilado.
[5]
Utopia, nº 6, p. 82
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